18.12.11

A Grande Pirâmide de Londres

Em 1842, antes do arquitecto Thomas Willson fazer parte da comissão dirigente da General Cemetery Company - companhia responsável pelo cemitério de Kensal Green, o primeiro dos Sete Magníficos cemitérios de Londres -, o seu nome apareceu associado a uma das maiores follies* cemiteriais de que há memória.

Na primeira metade do século XIX, quando os londrinos começaram a conceber novas formas de lidar com os mortos, alguns arquitectos, mais criativos ou ousados, decidiram fazer propostas fora do comum.
Uma das mais curiosas foi a Grande Pirâmide de Londres, que teria capacidade para receber cerca de cinco milhões de mortos, acomodados em noventa e quatro camadas que lhe daria uma altura superior à catedral de St. Paul.
Com a base do tamanho da Russell Square, ficaria em Primrose Hill e, se tivesse sido construída, teria mudado radicalmente o perfil da cidade de Londres.
Concebida para ser construida em tijolo e forrada a granito, teria capacidade para receber anualmente cerca de quarenta mil corpos, nas duzentas e quinze mil duzentas e noventa e seis catacumbas, cada uma capaz de guardar vinte e quatro caixões, que seriam alugadas a paróquias ou famílias particulares por £50.
A pirâmide teria ainda uma capela, um escritório, acomodações para vários funcionários e, alinhado com o espírito vitoriano, um observatório no topo.
O custo estimado rondava as £2,500,000 e nem o fundo de investimento criado permitiu angariar o dinheiro necessário para a construção, pelo que a Grande Pirâmide de Londres nunca passou do papel.

Se tivesse sido construída seria um mausoléu gigantesco e inigualável e teria tido um impacto tremendo na concepção e desenho dos cemitérios modernos que, acredito, seriam bem diferentes do que são actualmente.



*follies
é o plural de folly (do francês folie) e em arquitectura, apartir dos século XVIII e XIX, significa um edifício de custo de construção e manutenção elevado, normalmente não funcional, construido especialmente por questões estéticas.
Um dos mais conhecidos é, talvez, Fonthill Abbey, do escritor britânico William Beckford, autor de Vathek.

7.12.11

Fim dos Beijos em Oscar Wilde

Há rituais quase obrigatórios, quando se fazem visitas a determinados sítios.
Acontece em cidades, países, museus - ao visitar Lisboa tem de se comer um Pastel de Belém, ao ir ao Porto e tem de se parar no Café Majestic, em Londres é preciso ver o Big Ben -, mas também acontece com cemitérios.

Uma visita a Père Lachaise inclui quase sempre uma paragem junto das grades anti-motim que cercam a campa de Jim Morrison e um beijo de batôn na campa de Oscar Wilde.
Agora já não.

Oscar Wilde (Α:1854 - Ω:1900) não teve um final feliz.
Nascido numa família irlandesa e tendo estudado em Trinity Colege - a célebre universidade no coração de Dublin - as suas peças e poemas transformaram-no numa celebridade da sociedade vitoriana de 1880 e 1890.
Casado e pai de dois filhos, foi preso por conduta homossexual na cadeia de Reading, nos arredores de Londres. As condições adversas da cela, os maus tratos e humilhações quebraram-lhe o espírito e destruíram-lhe a saúde; passados dois anos, regressou à liberdade e exilou-se no continente, acabando por se refugiar em Paris.
Na miséria e com uma saúde muito debilitada, viria a morrer com apenas quarenta e seis anos, vitima de uma meningite e de uma infecção no aparelho auditivo.

Foi enterrado numa campa temporária no cemitério de Bagneaux, coberto com cal, numa tentativa de acelerar o processo de decomposição, mas, estranhamente, a cal teve o efeito contrário e preservou o corpo.
Passados nove anos, Robert Ross mandou levantar os restos mortais do seu amigo Wilde e levou-os a sepultar no cemitério de Père Lachaise, tendo sido encomendada uma escultura a Jacob Epstein (Α:1880 - Ω:1959) .

Epstein concebeu uma representação de Wilde enquanto um mensageiro alado, num estilo art deco egípcio.

O "anjo" de Wilde está numa posição fora do comum, deitando, num simulacro de voo, os braços estendidos ao longo do corpo e as asas, estilizadas, abertas.
Estas características seriam já suficientes para colocar de sobreaviso algumas personagens mais conservadoras, mas o verdadeiro pomo da discórdia consistiu nos órgãos genitais da figura.

Quando, após três anos a trabalhar na peça, o escultor chegou a Père Lachaise para concluir a instalação, encontrou o seu trabalho coberto por um pano e rodeado de polícias: aparentemente o conservador do cemitério considerara a obra "indecente" e banira-a.

A pressão da massa intelectual parisiense não foi suficiente para para levantar a sanção, mas - talvez inspirado pela bula do Papa Paulo IV que, em 1557, institucionalizou o uso das folhas de figueira para cobrir os genitais em obras de arte e certamente não querendo ir tão longe quanto o Papa Pio IX que as mandou castrar - o curador do cemitério acabou por mandar cobrir os genitais da estátua com uma placa que fazia lembrar uma folha de figueira, antes de aceitar a sua exposição em 1914.

Literalmente, do noite para o dia, a placa/folha desapareceu e com ela parte dos genitais do mensageiro alado.
Reza a lenda que em 1922 alunos universitários invadiram o cemitério na calada da noite e, após retirarem a folha de figueira, partiram parte dos ofensivos genitais e levaram-nos.
Outra versão, mais colorida, diz que duas senhoras inglesas ficaram ofendidas com a generosidade com que Epstein representara os genitais do poeta e decidiram tratar do assunto pessoalmente, emasculando a estátua e deixando o ofensivo pedaço de pedra junto do pedestal. Diz-se ainda que o curador do cemitério o recolheu e passou a tê-lo na sua secretária, servindo-se dele como pisa-papéis.
Seja como for, a estátua ficou como a podemos ver agora.

A campa de Oscar Wilde, à semelhança da sua residência em Dublin, tornou-se local de peregrinação para os fãs; aparentemente, durante décadas, estes iam deixando mensagens escritas na pedra e em 1990 os descendentes de Wilde mandaram limpar a estátua e, ao mesmo tempo, conseguiram-lhe o estatuto de monumento histórico.
Foi então que, ao pararem as mensagens, começaram os beijos. Sempre com tons cor-de-rosa ou vermelho, os fãs de Wilde iam beijando a campa, deixando o seu tributo marcado na pedra com batôn.
Sempre encarei esse gesto como uma homenagem e não como vandalismo, mas os descendentes do poeta pensaram de maneira diferente e mandaram novamente limpar a campa, a tempo para a comemoração dos cento e onze anos sobre a morte de Oscar Wilde, que ocorreram no passado dia 30 de Novembro (dia de morte que partilha com Fernando Pessoa).
Ao reinaugurar a peça, fizeram-na cercar por um vidro espesso, colocado a cerca de meio metro da campa, terminando assim com o ritual de décadas.


Conseguiram acabar com os beijos de batôn na pedra, mas isso não garante que os fãs não continuem a deixar a sua homenagem a Oscar Wilde.
Se calhar, passando agora a beijar o vidro...


Adenda: em 2006, Wes Craven realizou o segmento no cemitério de Père Lachaise, usando a sepultura de Oscar Wilde e o ritual dos beijos de batôn, para o filme Paris, Je T'aime. Até Oscar Wilde aparece como personagem.



Com um obrigada à tafófila Raquel Pais.

5.12.11

Natal para Tafófilos - Edição 2011

Com a proximidade das festividades natalícias e o hábito de oferecer presentes, parece-me adequado deixar uma ou duas recomendações para prendas de Natal para Tafófilos.

Para recomendações em português, recordo as recomendações para a Feira do Livro.
Não existe muita coisa sobre ou relacionada como cemitérios a ser editada em português, infelizmente.
Destaco, mais uma vez, o livro de Philippe Ariès "Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média" da editora Teorema.

Para quem estiver disponível para ler em inglês, o leque de opções é bem mais abrangente.
Destaco o livro de Paul Koudounaris "The Empire of Death".

Com imagens maravilhosas, capa dura e uma edição de luxo, esta obra promete fazer as delícias de qualquer tafófilo.
Interessante é o facto de incluir imagens de oito capelas de ossos e carneiros portugueses. Até ao momento, em português e sobre este tema, encontrei apenas o trabalho de Carlos Veloso "As Capelas dos Ossos em Portugal" pela editora Minerva, pelo que é uma mais valia ter também o livro de Koudounaris.
Se encomendarem já, deve ainda chegar a tempo do Natal.

Não deixem de visitar a página do autor Empire De La Mort.


A fotografia é da Capela dos Ossos de Campo Maior, Portugal
e é da autoria de Paul Koudounaris.


1.12.11

Mort Safe em Destaque no "Ave Rara"

O site "Ave Rara - Portal de Divulgação Cultural, Reportagens e Entrevistas" publicou uma entrevista comigo sobre o blogue Mort Safe.

É muito agradável poder contribuir activamente na desmistificação da tafofilia, promovendo as visitas culturais e turísticas em cemitérios e outros locais inseridos na dimensão do necroturismo.

Podem encontrar a reportagem/entrevista a partir daqui: "Tafofilia: Um Outra Forma de Viver a Morte".

20.11.11

Um Século de Exposição de Cadáveres

Para a nossa sensibilidade de século XXI, em que deixámos a Morte escondida atrás de cortinas hospitalares e paredes pintadas a cru de lares de idosos, a ideia de considerar uma morgue como ponto de interesse turístico é, no mínimo, estranha, mas estivéssemos em Paris no século XIX, não só nos pareceria natural como apetecível.

A Morgue de Paris atraía multidões na ordem dos milhares de indivíduos e era mencionada nos guias turísticos da cidade.

Desde o século XIV que os franceses tinham locais onde conservavam os corpos não identificados para apresentação pública, numa tentativa de os identificar e entregar aos familiares. Posteriormente, aquilo que era da responsabilidade das ordens religiosas, como a Ordem de Santa Catarina, passou a ser responsabilidade do Estado.
Nas caves do Châtelet de Paris, onde, desde há muitos anos, funciona a sede da polícia, tribunal e cadeia e por onde passaram presos famosos na época da revolução francesa, como Marie Antoinette, existia uma sala onde eram colocados os cadáveres desconhecidos para visionamento e identificação pelo público.
Essa sala era chamada de basse-géôle e os registos da época descrevem-na como sendo pequena e húmida, onde os cadáveres eram arrumados uns sobre os outros e os familiares procuravam, de lanternas em punho, pelos seus entes queridos entre os corpos empilhados.
Numa Paris que tinha expulsado os cemitérios para a periferia da cidade por questões de higiene, este estado de coisas era impensável e, depois de ter sido decretado pela polícia, em 1800, que a identificação de cadáveres era essencial para se manter a "ordem social", foi decidido que era necessário criar uma morgue adequada, construída e desenhada de forma a garantir que a observação dos cadáveres pelo público se faria da forma mais adequada possível.

É em 1804 que é criada a primeira Morgue de Paris, no coração administrativo da cidade, no movimentado Marché-Neuf. Mudam-lhe o nome de basse-géôle para morgue, palavra que tem origem no verbo morguer que significa olhar de forma inquisitiva e fixa.
Este novo edifício ficava junto do Sena, uma vez que, normalmente, os cadáveres eram trazidos por barcos e porque a maioria dos corpos não identificados eram encontrados no rio. Acidentes, suicídios e assassinatos: quase todos os corpos expostos na Morgue de Paris tinham origem no Sena.

O ponto central deste novo edifício era a sala de exposição, com duzentos e dez metros quadrados, envidraçada, com marquesas de mármore onde os corpos eram apresentados ao público. Os corpos era despidos, os genitais cobertos com um pano e as roupas eram penduradas em cabides perto dos corpos, numa tentativa de auxiliar a identificação dos defuntos, que se iam decompondo.

Apesar desta primeira morgue ser uma clara melhoria face à basse-géôle nas caves do Châtelet, com a reorganização da cidade, promovida por Georges Haussmann, ela foi encerrada e destruído o edifício onde operava.
A nova Morgue de Paris, considerada exemplar, modelo de higiene e salubridade, foi desenhada por Félix Gilbert e construída em 1864 nas traseiras da catedral de Notre Dame.

A grandiosidade deste novo local fica expressada pelas dimensões da nova sala de exposição, que com oitocentos e trinta e cinco metros quadrados, conseguia ser quatro vezes maior que a anterior, apresentando duas filas de seis marquesas de mármore negro, permitindo ter doze cadáveres em exposição ao mesmo tempo.

A localização continuava a ser junto ao Sena, mas uma porta nas traseiras do edifício permitia a entrada de novos cadáveres longe dos olhos do público. O novo espaço tinha ainda um maior número de salas de autópsia, uma lavandaria para tratamento dos pertences dos cadáveres e uma maior área para trabalho administrativo.
Três enormes portas de madeira na frente do edifício davam acesso à sala pública onde, através de uma enorme parede de vidro, podia ver-se o interior da sala de exposição, onde ficavam os cadáveres.

Este novo espaço encarava a apresentação dos cadáveres como o seu objectivo principal e dispunha até de uma cortina verde, que era corrida quando era necessário retirar ou colocar um novo corpo ou fazer qualquer outra alteração que se considerasse que não devia ser presenciada pelo público.
Uma vez que os corpos, normalmente, estavam em exposição apenas três dias, a partir de 1877 os funcionários da morgue passaram a fotografá-los, deixando as fotografias e os pertences em exposição, numa tentativa de prolongar a exposição do cadáveres e, com isso, aumentar as probabilidades de identificação.
O prolongamento da exposição era, de facto, uma preocupação. Em 1882, foi encontrada uma nova forma de conservar os cadáveres, baseada no sistema utilizado para o transporte de carnes; sistema que serviu de modelo para morgues em toda a Europa.


No entanto, se considerarmos que a Morgue de Paris tinha cerca de um milhão de visitantes por ano, facilmente percebemos que as visitas dos populares não tinham por objectivo a identificação dos cadáveres expostos, mas sim o espectáculo do macabro.

Esta realidade da Morgue, enquanto atractivo para as multidões e espectáculo gratuito, era especialmente visível quando um caso específico tocava no lado mais sensível dos espectadores.

Sempre que os cadáveres em exposição na morgue apresentavam indícios de crime ou suicídio, os jornais tornavam-nos notícia - em especial se se tratavam de crianças ou mulheres -, apresentando até desenhos detalhados dos corpos e dos indivíoduos que se juntavam para observá-los, o que influenciava o público e arrastava novas multidões para as portas da morgue.
Essas multidões também acabavam por ser notícia, alimentando um ciclo vicioso que mantinha alguns casos nos jornais durante meses.

Existem alguns exemplos famosos e um deles é o da Desconhecida do Sena, cuja máscara mortuária enfeitou as salas dos artistas e burgueses durante anos, um pouco por toda a Europa.

Outro caso muito falado foi o Mistério de Suresnes. Em apenas quatro dias, estimou-se que tivessem passado pela Morgue de Paris cerca de trinta mil pessoas para ver as duas pequenas crianças retiradas das frias águas do Sena: uma bebé de dezoito meses e outra de três anos, que se julgava serem irmãs, sentadas em cadeiras forradas com um material cinzento, por serem demasiado pequenas para serem colocadas nas marquesas.
As crianças acabaram por ser identificadas, retiradas da sala de exposição, descongeladas e autopsiadas; no entanto, a identificação provou ser errada e elas foram novamente congeladas e colocadas na sala de exposição para satisfação dos aficionados.
Foi ainda encontrada uma mulher que teria estado cerca de três semanas perdida nas águas do rio, colocado a data da sua morte próxima da data de morte das crianças, e o interesse nas pequeninas de Suresnes regressou em força. Porém, a mulher foi rapidamente reconhecida e resgatada por um familiar, destruindo a potencial associação às duas meninas.
As crianças acabaram por ser enterradas sem terem sido reconhecidas e o caso desapareceu dos jornais. Este episódio durou cerca de um mês, arrastando multidões de visita à Morgue de Paris.
Como estes dois casos, inúmeros outros fizeram lucrar os jornais de Paris até ao encerramento da Morgue.

Em Março de 1907, mais de cem anos após a abertura da morgue de Marché-Neuf, a Morgue de Paris encerrava as portas ao público, deixando de permitir o visionamento dos corpos pelos populares.
Apenas a familiares de pessoas desaparecidas era dado o acesso à sala de exposição.

Encerrava-se assim um dos maiores espectáculos gratuitos da cidade de Paris, capaz de atrair multidões e o interesse de parisienses e estrangeiros durante mais de um século.

2.11.11

Identidades Trocadas: Molière e La Fontaine

O cemitério parisiense de Père Lachaise é, certamente, o local mais cobiçado para última morada da maioria da população ocidental, mas nem sempre foi assim.
Durante o século XVII os inúmeros cemitérios de Paris estavam completamente saturados, pelo que, em 1786, foram extirpados do interior da cidade, tendo as antigas ossadas sido transportadas para as galerias das antigas pedreiras, que se tornariam nas Catacumbas de Paris.
Para os novos enterramentos foram criados quatro novos cemitérios, rodeando a cidade nos quatro pontos cardeais: Norte, Oeste, Este e, mais tarde, Sul.
O Cemitério Este, mais conhecido por Cemitério de Pére Lachaise, foi criado por Napoleão I em 1804; ocupa toda uma encosta e recebeu o nome do padre confessor de Louis XIV, que habitou numa residência jesuíta no local onde fica presentemente a capela.
Pertencendo a uma nova escola onde os cemitérios tentavam ser representações terrenas de Arcádia e Campos Elísios, Père Lachaise era um cemitério muito diferente daquilo a que a população estava habituada. Para além disso, era também o cemitério mais afastado do coração da cidade, pelo que poucos eram os cidadãos que pretendiam ser aí enterrados.
Nos seus três primeiros anos de existência não havia mais de sessenta pessoas ali enterradas, sendo que hoje o número é cerca de um milhão.
Procurando aumentar-lhe o prestígio de forma a tornar o espaço mais apelativo, Nicolas Frochot decidiu propor a transladação de alguns dos mais famosos parisienses para Père Lachaise.
Entre os escolhidos para serem inumados no novo cemitério encontravam-se o dramaturgo Molière e o escritor La Fontaine, cujas ossadas estavam em exposição no Museu Nacional dos Monumentos Franceses.

Em 1673, enquanto actuava, Molière sentiu-se mal em palco. A personagem que representava era um homem doente que acabava por morrer em cena. Os seus espasmos - reais - foram interpretados pelo público como fazendo parte da peça e, cerca de uma hora depois de sair de cena, Molière morreu.
As regras da igreja ditavam que os actores - à semelhança dos heréticos, feiticeiros, usurários e pagãos - não podiam ser enterrados em solo sagrado, o que levou a viúva de Molière a apelar às autoridades eclesiásticas e ao rei de França, procurando que fosse aberta uma excepção que permitisse o enterramento cristão ao falecido.
O rei intercedeu junto da Igreja e, quatro dias após o óbito, obteve-se autorização para inumar Molière no cemitério de Saint Joseph, numa cerimónia nocturna.
Consta que, logo que a multidão que se reuniu para acompanhar o actor e dramaturgo à sua última morada se desmobilizou, a sepultura voltou a ser aberta e o corpo de Molière foi retirado e enterrado noutra zona do cemitério, numa vala comum para não-baptizados.
Tudo o que ficou registado é que Molière foi enterrado algures no interior do cemitério de Saint Joseph, sendo que após o registo inicial se encontraram vários aditamentos e notas, referindo a trasladação dos restos mortais de Molière, notas essas muitas vezes contraditórias. Julga-se que em 1750 ele foi transferido para o interior da igreja, mas mesmo isso acaba por não esclarecer se ele voltou a ser enterrado no local original ou se foi enterrado noutro espaço qualquer do cemitério.
Em 1792, quando foi tomada a decisão de exumar os corpos de La Fontaine e Molière, ninguém conseguia dizer exactamente onde o dramaturgo estaria enterrado.
Assim, os comissários encarregados da exumação decidiram abrir uma sepultura num talhão dos não-baptizados e dela foi retirado um esqueleto que, etiquetado como sendo de Molière, foi colocado num novo caixão e arrumado na cripta da igreja de Saint Joseph e mais tarde num armazém até 1799, quando foi transferido para o Museu Nacional dos Monumentos Franceses e deixando em exibição publica até 1817.
Durante esses anos, este falso Molière teve por companheiro um falso La Fontaine: os mesmo comissários responsáveis pela exumação do primeiro tiveram a tarefa de localizar e exumar o segundo; por isso, desenterraram outro corpo no mesmo local e disseram que se tratavam dos restos mortais de La Fontaine.

Considerando todos os factos apresentados, a probabilidade do esqueleto ser realmente de Molière é ínfima.
Já no caso de La Fontaine, a probabilidade das ossadas serem dele é simplesmente nula.
La Fontaine faleceu a 13 de Abril de 1695 tendo sido enterrado no cemitério de Les Innocents e não em Saint Joseph. A localização mais provável para as suas ossadas é o interior das Catacumbas de Paris, anonimamente perdido entre cerca de seis milhões de parisienses.
Assim, em 1817, "Molière", "La Fontaine" e os célebres amantes Héloïse e Abélard foram recebidos com pompa no novo cemitério.
A estratégia resultou: em menos de um ano, os talhões de Père Lachaise eram os mais cobiçados da capital francesa. Père Lachaise populou-se - sobrepopulou-se! - tendo-se tornado o local de eterno repouso de muitos populares e famosos, franceses e estrangeiros, que habitaram ou morreram em Paris, sendo um marco incontornável no mapa internacional do necroturismo.
Ainda assim, dentro dos túmulos dedicados a Molière e La Fontaine, estarão apenas parisienses anónimos.

31.10.11

Dia dos Fiéis Defuntos

Com o início do mês de Novembro aproximam-se duas datas que aparecem associadas aos cemitérios e à Morte; uma de modo correcto e a outra por engano ou necessidade: o Dia de Todos os Santos e o Dia dos Finados ou Fiéis Defuntos.
Existe alguma confusão identitária entre o Dia de Todos os Santos e do Dia dos Finados; talvez originada pelo facto do dia 1 de Novembro ser feriado e a maioria da população aproveitar a circunstância para visitar os cemitérios, embelezar e limpar campas, de acordo com o costume do Dia de Finados.
Na verdade, o Dia de Finados é dia 2 de Novembro, sendo que a 1 de Novembro se celebra o Dia de Todos os Santos - são, realmente, celebrações diferentes.

O Dia de Todos os Santos foi instituído para celebrar os todos santos da Igreja Católica, tendo sido criado quando se constatou que o número de santos e mártires era já superior ao número de dias do ano, o que impedia a atribuição de um dia específico a cada novo santo. Todos os dias do ano são dedicados a um determinado santo, de tal modo que ainda hoje há pessoas que recebem o nome de acordo com o santo que é celebrado no dia do nascimento (ou que recebem prendas no dia do santo de seu nome, mesmo nascendo em dia diferente).
Por este motivo, a Igreja definiu um dia em que todos os santos são celebrados, independentemente de terem um dia específico ou não.
Aliás, foi desta celebração que apareceu o nome Halloween, atribuído ao dia 31 de Outubro, outrora designado All Hallow's Eve: a véspera de todos os santos.

O dia 2 de Novembro é o reservado aos Finados.
Existem várias versões sobre a origem desta dedicação, mas as celebrações católicas associadas aos mortos começaram durante a Idade Média, quando a ideia de Juízo Final foi alterada.
Inicialmente considerava-se que os mortos ficavam num estado em que as suas almas se encontravam como que adormecidas, sendo que seriam "acordadas" no momento do Juízo Final, onde seriam julgados e posteriormente enviados para o Paraíso ou para o Inferno para toda a eternidade.
Durante a segunda idade média, esta prespectiva foi sendo alterada passando a conceber-se a existência de um julgamento imediato aquando da morte. Findo esse julgamento, onde mais do que o peso das boas ou más acções durante toda a vida era tida em conta a forma como essas acções eram encaradas pelo defunto, a alma seguia no imediato para o Paraíso ou para o Inferno.
É então criado o conceito do Purgatório, um local onde as almas dos mortos que não são maus o suficiente para ir para o Inferno, mas que também não são bons o suficiente para ir para o Paraíso, ficam em penitência para, com a ajuda das orações do vivos, conseguirem finalmente aceder aos Portões de São Pedro.

É esse o mote que transforma a Morte num negócio rentável para a Igreja.
Não só cobram os enterramentos ad sanctos (uma vez que a prática era "proibida" e, consequentemente, era necessário pagar um valor para a proibição ser levantada e a inumação ocorrer no interior das igrejas), como a participação nas procissões fúnebres e as diversas missas pelas alminhas dos defuntos.

As missas e orações pelas alminhas dos defuntos estão na origem do culto das alminhas, que esteve muito em voga no nosso país a partir do século XVI.
São inúmeras as capelinhas-oratórios que existem espalhadas na berma nas estradas nacionais ou nas esquinas de ruas de vilas e aldeias, funcionando como lembretes a pedir orações pelos mortos presos no Purgatório. Normalmente, são figuras humanas ou anjinhos, talhados em pedra, madeira ou delicadamente pintados em azulejo; por baixo das imagens pode ver-se um P.N.A.M - sigla que também é muitas vezes encontrada em campas de cemitérios católicos - e que significa Padre Nosso / Avé Maria, recordando as principais orações esperadas.

Diferentes culturas têm diferentes abordagens ao Dia dos Finados.
Na sua base está a raiz europeia, que dita que as pessoas se desloquem aos cemitérios, enfeitando e limpando campas, mesmo que algumas delas tenham já perdido o hábito de prestar o tributo das orações. Em algumas culturas essa celebração, em contacto com costumes locais igualmente antigos, converteu-se numa celebração diferentes.
Talvez a exemplo mais flagrante das diferentes abordagens é a forma como o sombrio Dia dos Finados é transformado na festa do Dia dos Mortos, no México. Oferendas de caveiras de açúcar exuberantemente enfeitadas, pães, bolos, bebidas são deixadas nas campas de familiares e amigos, em vigílias animadas e cheias de recordações.

Independentemente das diferenças, o Dia de Finados é o dia por excelência para recordar aqueles que já partiram.

22.9.11

Eternizados em Recifes

Ao longo da história, a posição do Homem em relação à Morte foi sofrendo alterações, de acordo com o espírito de cada época, sendo que o tratamento dado aos restos mortais - sejam eles ossos ou cinzas crematórias - reflecte sempre a perspectiva humana e o seu entendimento da divindade.

Considerando a teoria de Arìes, podemos dizer que depois da Europa ter domesticado a Morte, passou a vê-la na prespectiva do próprio, do outro e por fim, escondendo-a dos olhos dos vivos, tendo neste expoente, não só isolado a Morte nos ambientes esterilizados dos hospitais, mas também - e especialmente - tornado o luto interdito, carregado a saudade e a tristeza com um peso que as tornou socialmente inaceitáveis.
E é neste contexto que volta a prosperar a cremação como prática comum junto das sociedades ocidentais; mas a revolução industrial e, mais tarde, a revolução tecnológica transformaram a forma como tratamos o produto resultante do processo de cremação, as cinzas crematórias (cremains).

Para além dos tratamentos mais comuns, como espalhar as cinzas em jardins-memoriais, concebidos para esse efeito, ou num local de especial interesse para o morto ou a família, passaram também a criar-se produtos específicos - como o caso da utilização das cinzas para sintetização de diamantes e criação de jóias de luto - ou, entre muitas outras coisas, a desenvolver formas de incorporar as cinzas no mundo natural .
Neste sentido, uma empresa da Flórida, a Eternal Reefs, oferece aos seus clientes a possibilidade de verem as cinzas dos entes queridos transformadas em recifes. Segundo a empresa, eles consideram que oferecem um serviço que:
«combines a cremation urn, ash scattering and a burial at sea into one meaningful permanent environmental tribute to a loved ones life»
A ideia de criar recifes artificiais nasceu para dar resposta à necessidade de reparar e preservar os recifes existentes na costa da Flórida.
Foi desenvolvida uma estrutura artificial, designada de reef ball, que promovia a fixação de espécies marinhas, sem causar danos no fundo do oceano, aguentando correntes e tempestades.

Durante a última década do século passado, milhares destas estruturas foram sendo construidas e integradas, transformando o projecto num sucesso.

A transformação destes recifes em memoriais para cinzas crematórias surgiu de forma inesperada, quando o sogro de um dos sócios da empresa pediu que colocassem as suas cinzas num deles; depois da morte e cremação, as cinzas foram entregues ao genro, que as misturou no cimento de construção de uma reef ball que foi colocada no mar, em Sarasota na Flórida.

Rapidamente, a ideia espalhou-se e a quantidade de pessoas a desejar ter as cinzas imortalizadas num recife aumentaram o suficiente para criar-se uma empresa apenas com esse objectivo. Assim, é possível "comprar" um lugar numa das reef balls, sendo que, dependendo do modelo, é possível conter as cinzas de duas a quatro pessoas. Existem até reef balls específicas para animais de estimação.
Tal como da primeira vez, o processo passa pela mistura das cinzas no cimento usado para criar a reef ball, podendo ainda serem criadas inscrições nas próprias estruturas que identificam as pessoas que aí estão imortalizadas.
Uma opção muito em voga junto dos amantes do oceano...

31.8.11

Falecidos Famosos: Charles Baudelaire


A 31 de Agosto de 1867, na cama de uma casa de saúde em Paris, depois de dois anos acamado, semi-paralisado, morria Charles Baudelaire, o poeta que cunhou a palavra modernidade, que traduziu Edgar Allan Poe para francês e que publicou as maravilhosas Flores do Mal.

Baudelaire está enterrado no cemitério parisiense de Montparnasse, mas as suas palavras influenciaram gerações e vão durar para sempre...



«Lembras-te, meu amor, de uma coisa que vimos
Nessa manhã de Verão, suave:

Na curva do caminho um pútrido cadáver,

Num leito de pedras, sozinho,»

Baudelaire

29.8.11

Simbologia: Coluna Quebrada

Em paralelo com a ampulheta alada este é, talvez, um dos mais populares símbolos de mortalidade a ser encontrado nos cemitérios românticos.

Internacionalmente bastante popular em meados do século XIX, é possível encontrar vários espécimes no nosso país, adornando campas e cenotáfios.

A coluna quebrada representa o final da vida, mais precisamente de uma vida terminada antes do tempo, sendo por isso normalmente associada à morte de jovens.
Outro símbolo com essa interpretação é o tronco de ramos quebrados, também muito frequente entre nós.

Em outros contextos, ela é um símbolo maçónico, com significado próprio.

Apesar de algumas fontes referirem a utilização da coluna quebrada para marcar campas de maçons, é bastante mais comum encontrar essa marcação com outros símbolos maçónicos como o compasso, o olho no delta radiante, a águia bicéfala, etc.

22.8.11

A Maldição do Anjo Negro

No cemitério de Iowa City, no estado norte-americano do Iowa, uma enorme estátua de um anjo negro causa arrepios aos visitantes que passeiam entre os monumentos.

Numa posição fora do comum, o anjo chama rapidamente a atenção: olhos no chão e rosto triste, asas abertas e desencontradas - uma apontando para o lado, outra apontado para baixo -, braços ao longo das asas, de palmas viradas para fora.

Apesar da estátua ser do inicio do século XX, faltam-lhe já alguns dedos; aparentemente, obra dos alunos das universidades da zona, que transformaram a sepultura num ponto de paragem obrigatória nas noites de Halloween.

O cemitério é de 1843, mas o anjo de bronze de dois metros e meio de altura, da autoria do escultor checo Mario Korbel, foi colocado aí em 1913 por Teresa Feldevert.

Teresa nasceu na República Checa e mudou-se para os Estados Unidos no final do século XIX com o seu filho Edward, trabalhando como parteira em Iowa City.
Vitima de doença, Edward faleceu com apenas dezoito anos em 1891 e foi enterrado no cemitério da cidade. Teresa mandou construir um pequeno monumento, com um tronco de árvore quebrado, simbolizando a vida interrompida de seu filho e mudou-se para o estado de Oregon, onde casou pela segunda vez. Anos mais tarde, Teresa perdeu o novo marido num acidente trágico.
Regressada a Iowa City, mandou fazer um novo monumento para colocar na sepultura de família, tendo encomendado um enorme anjo de bronze, para colocar sobre um pedestal contendo um compartimento que permitiria colocar cinzas no interior.

Em 1924, Teresa morreu e as suas cinzas, à semelhança das do segundo marido, foram colocadas no interior do pedestal. No monumento, foi gravada a data de nascimento de Teresa, mas não a da morte.

E é então que começa o mistério...

Dizem os locais que o enorme anjo de bronze ficou negro durante uma violenta tempestade, que caiu sobre o cemitério, na primeira noite em que as cinzas de Teresa aí foram depositadas.
Reza a história - a lenda? - que Teresa não era boa pessoa, que traiu o marido depois da morte deste, faltando a uma promessa que lhe fizera sobre o leito de morte e que o filho não morreu de doença, mas foi sufocado por ela durante o sono.

Dizem que a maldade de Teresa era tanta que o Anjo Negro ficou amaldiçoado, que quem o tocar só viverá sete anos e que quem o beijar, em noite de lua cheia, sentirá o coração parar nesse instante, caindo aos pés do anjo, fulminado...

20.8.11

Caril entre Campas

Diferentes culturas lidam com a Morte - e os locais de Morte - de diferentes formas.
Recentemente, o documentário A Cidade dos Mortos de Sérgio Tréfaut mostrou-nos como na cidade do Cairo, no século XXI, ainda existem pessoas que vivem em cemitérios, entre os mortos, dentro dos mausoléus dos seus antepassados ou em espaços alugados.

Mesmo na Europa, durante a Idade Média - quando os cemitérios eram as igrejas e, na extensão das inumações ad sanctos, os seus átrios e pátios exteriores - havia gente a viver nesses espaços de Morte, uma vez que os cemitérios tinham também o papel de santuário, ou seja de local de protecção para todas as pessoas que ali estivessem. Principalmente em alturas turbulentas, de guerras e saques, os pátios da igrejas eram ocupados por populares que construiam pequenas barracas para dormir, ou se encostavam nas arcadas onde era guardados os ossos (charniér) e capelas mortuárias junto às paredes das igrejas.
Para além de servirem de santuário, os cemitérios eram também o local de reunião das comunidades e o local de eleição para o comércio: a banca dos livreiros e dos linhos cruzava-se com a banca do pão, bem ao lado da vala comum, aberta e temporariamente coberta por umas tábuas, até atingir a lotação completa (podiam servir para quinhentos ou mil e quinhentos corpos, dependendo do tipo de vala) e ser fechada.
E a vida continuava, naturalmente, estando a Morte - e os mortos - bem mais presentes no dia-a-dia dos vivos do que se poderá pensar hoje, quando a escondemos e fingimos que ela não existe.

Próximos dessa realidade estão os clientes do restaurante New Lucky em Ahmedabad, na Índia. As especialidades do New Lucky são: o chá com leite, os butter rolls e as campas.
Aquilo que começou por ser uma muito bem sucedida e simples barraquinha de chá, montada junto a um antigo cemitério muçulmano, rapidamente se transformou num simples e bem sucedido restaurante.
Com amplo menu vegetariano (servem cerca de noventa pratos diferentes), o New Lucky parece ser um favorito junto de locais e de turistas.
Krsihan Kutti Nair é do dono deste restaurante que tem já cerca de quarenta anos. É ele quem, todas as manhãs, limpa as campas verdes com um pano húmido e as decora com flores secas.
Não sabe de quem são os restos mortais que tem enterrados, literalmente, no meio do restaurante, mas dizem-lhe que se trata de familiares de um Sufi do século XVI, cuja campa também estará por perto.
A verdade é que Krsihan Kutti Nair considera que a presença destas campas, que levam os empregados a saltitar para chegar às mesas e servir os clientes, é boa para o negócio e, de facto, o caso parece ser esse, uma vez que as mesas do New Lucky estão sempre cheias.

Paragem obrigatória para os tafófilos em vista a Ahmedabad, Índia.


16.8.11

Trivia Tumular: Rod Stewart, O Coveiro

Sabia que...

Rod Stewart, um dos artistas mais bem sucedidos de todos os tempos, trabalhou como coveiro no cemitério de Highgate, com o objectivo de enfrentar o medo da Morte, que tinha desde criança.

Não se sabe se a terapia auto-imposta resultou, mas a seguir a Highgate, Stewart trabalhou ainda numa agência funerária em North Finchley, um subúrbio de Londres, antes de se tornar numa vedeta internacional.


11.8.11

Máscaras Mortuárias

Em 1270, morreu na Tunísia o rei francês Luís IX. Estando ele a participar na oitava cruzada, acompanhado de militares e de toda a corte, foi uma procissão enlutada que, no ano seguinte, iniciou o regresso a França.
Na procissão seguia o novo rei Filipe III, filho do falecido, e a sua esposa, Isabella de Aragão.
Ao reiniciarem a marcha, após uma paragem na Calábria, Isabella caiu do cavalo; estando grávida de seis meses, a queda provocou um aborto e ela também acabou por falecer, passados poucos dias.
O rei, duplamente enlutado, mandou erguer um mural no local em que Isabella falecera, onde uma figura de mulher, ajoelhada, reza perante uma imagem da Virgem com o Menino.
O trabalho é esculpido e não pintado, como era mais comum, mas é no rosto da figura que recai a nossa atenção.
Para além desta se encontrar de olhos fechados na presença da Virgem e do Menino, o que é invulgar, o rosto está estranhamente inchado e é rasgado por uma enorme cicatriz.
Uma das hipóteses levantadas para estas particularidades é a possibilidade do escultor ter trabalhado com base numa máscara mortuária da rainha, feita logo após o falecimento.
A ser verdadeira, esta hipótese data as primeiras máscaras mortuárias como sendo artefactos criados no século XIII e não no século XV, como é aceite.
Foram várias as vozes que se levantaram contra a hipótese, explicando que não só as máscaras de cera ou gesso não eram utilizadas nessa altura, como elas só se popularizaram dois séculos depois. A existência de uma cicatriz foi explicada como tendo origem num defeito da pedra que foi utilizada para a escultura.

A busca da imagem realista, iniciada no século XIII, irá ser um dos factores que difundirá o uso das máscaras mortuárias nos séculos XV e XVI, uma vez que permitem preservar a imagem realista do morto e, consequentemente, a realização de retratos e estátuas capazes de captar a sua imagem em vida: assim, ao contrário das imagens macabras e, por vezes, quase satíricas, usadas em representações da Morte, nas quais os esqueletos e a putrefacção dos corpos fazem parte da dance macabre com o objectivo de funcionarem como um memento mori, a utilização das máscaras mortuárias tem como objectivo permitir aos artistas a simulação da vida.

A partir do século XV, a realização de moldes de cera ou gesso a partir dos rostos dos mortos,vai ser um hábito comum por toda a Europa, especialmente porque vai também existir uma evolução cultural que esconderá os corpos e terá um impacto directo nas praticas fúnebres, levando ao uso regular de caixões.
Esta ocultação do cadáver levou à necessidade de criar uma representação do morto, o mais próxima possível daquilo que ele foi em vida, para colocar sobre o caixão.
Estas representações eram feitas em madeira ou cera e os artistas recorriam a máscaras mortuárias feitas a partir de moldes criados imediatamente a seguir à morte.
No entanto, mais do que responder a uma necessidade prática, a criação destas máscaras mortuárias respondia a um impulso natural para a preservação da imagem do morto.

Depois da morte de Chopin, chamou-se imediatamente o escultor Clesinger - artista responsável pela estátua de pedra que adorna a campa do compositor no cemitério de Père Lachaise -, para que fizesse um molde do rosto e mãos do artista, no sentido de serem reproduzidas não só em gesso com em bronze.
Para além das máscaras mortuárias de pessoas famosas, foram também realizadas máscaras de pessoas desconhecidas, com o objectivo de, por exemplo, conseguir-se identificar os cadáveres mais tarde, mesmo quando estes seriam já irreconhecíveis.

Um desses casos ficou famoso e a imagem da Desconhecida do Sena chegou até nós.
Reza a lenda que no final dos anos oitenta do século XIX foi encontrada no Sena uma jovem mulher cujo corpo não apresentava indícios de assassinato ou acidente, pelo que se considerou um suicídio.
Diz-se que a beleza da jovem, a perfeição do rosto e o misterioso sorriso deixaram o patologista de Notre Dame surpreendido e levaram-no a recorrer a um artista de moldes para a realização de uma máscara mortuária que, sem ele imaginar, se tornaria no rosto do início do século XX.
Existem outras versões sobre a origem da máscara, que transformam esta jovem mulher na filha de um artista de moldes alemão, por exemplo.
Seja qual for a verdadeira origem deste molde, no final do século XIX (quando era moda comprar para ter em casa, como bibelots, máscaras mortuárias de personalidades famosas), poucas - ou nenhumas! - eram máscaras de mulheres. Logo, a Desconhecida do Sena deu rapidamente nas vistas entre os rostos masculinos, pendurados nas paredes das lojas de moldes, e tornou-se o rosto obrigatório nas salas-de-estar da burguesia francesa.
Eventualmente, atravessou fronteiras e fez também grande sucesso na Alemanha, tornando-se num modelo a copiar - reza a lenda que até actrizes, como Elisabeth Bergner, viram na Desconhecida do Sena um ideal de beleza.
Poetas, pintores, escritores e outros artistas namoraram o rosto da Desconhecida do Sena e inventaram-lhe biografias maravilhosas e terríveis.
Quando, nos anos cinquenta do século XX, o fabricante de brinquedos norueguês Asmund Laerdal - obcecado com salvamentos, primeiros-socorros e ressuscitação, desde que a sua filha de dois anos morrera afogada - decidiu fazer um boneco, de forma humana e tamanho real, para os nadadores-salvadores e os socorristas praticarem técnicas de salvamento, foi a máscara mortuária da Desconhecida do Sena que lhe serviu de rosto: conhecida como Resusci Anne, ainda está em uso nas aulas contemporâneas de primeiros-socorros.

No século XIX, a chegada do daguerreótipo tornou obsoletas as máscaras mortuárias, dando lugar às fotografias post mortem que também tentavam simular a vida.
As máscaras mortuárias ainda foram utilizadas no século XX: por exemplo, depois do suicídio de Heinrich Himmler, por ingestão de uma cápsula de cianeto, escondida num dente molar, os agentes dos Serviços Secretos Britânicos fizeram-lhe uma máscara mortuária como prova da sua morte.

Termino, deixando um link onde se dão alguma dicas sobre como fazer máscaras mortuárias. Neste caso, os autores do artigo propõem que estas sejam feitas com recursos a modelos vivos.
A técnica é exactamente a mesma; a única diferença é que, no caso dos modelos vivos, é necessário garantir que o modelo consiga respirar quando lhe é aplicado o gesso...


9.8.11

Vida e Morte em Portugal



Interessantíssimo documentário do início dos anos 90, parte da série Viagem ao Maravilhoso sobre as práticas de Morte em Portugal.
Contém imagens de núcleos museológicos dedicados à funerária, simbologia, etc.
Destaque para o cemitério e museu da Chamusca e a história da morte na Europa; menção à lenda referente às intervenções do fantasma de Sousa Martins em curas e sessões espíritas e à relação entre a Morte e as praticas populares do Carnaval e da Páscoa.


5.8.11

Monumentos Memoráveis: Anjo da Mágoa

Todas as artes têm a sua Mona Lisa: uma peça que toda a gente conhece, que toda a gente já viu algures e que consegue, muitas vezes, saber o nome do autor, o estilo a que pertence, o local onde se encontra.

Não sei se podemos dizer, sem sombra de dúvida, qual é Mona Lisa da escultura cemiterial, mas se tivesse de escolher uma peça, escolheria o Anjo da Mágoa (Angel of Grief no original) de William Story.


Esta peça magnifica encontra-se na campa da família Story, no Cemitério Não-Católico de Roma e foi o último trabalho do artista, que a concebeu pouco tempo antes de morrer, para a campa de Emelyn Story, sua esposa.

Os registos que encontrei diferem, colocando a morte de Emelyn e eventual realização da peça ora em 1894, ora em 1895. No entanto, em algumas imagens disponibilizadas na Internet, é possível ver uma data gravada no monumento: Janeiro de 1895; uma vez que William Story faleceu em Outubro de 1895, podemos concluir que a data diz respeito à sua mulher e que a peça foi feita entre Janeiro e Outubro de 1895.

Esta é, sem dúvida uma das obras cemiteriais mais conhecidas, tendo até sido utilizada como imagem de capa de diversos discos; recordo, a título de exemplo, a capa do álbum Embossed Dreams in Four Acts da banda de metal grega Odes Of Ecstasy.

Para além disso, o magnifico Anjo de Story foi também replicado em quase todos os países: só nos Estado Unidos foram registadas mais de onze reproduções em diferentes cemitérios.
Existe até um grupo, no site de fotografia Flickr, dedicado apenas a fotografias deste anjo, recebendo imagens de todo o mundo.

Surpreendentemente - ou não! - ainda não encontrei nenhuma réplica exacta do Anjo da Mágoa em cemitérios portugueses, ao contrário do que aconteceu com a imagem do anjo e da donzela de Frederico Fabiani, existente no Jazigo Parpaglioni em Génova; no entanto, quer no cemitério de Agramonte, no Porto, quer no cemitério da Conchada, em Coimbra, foi possível encontrar uma réplica alterada: não se trata de um anjo, mas sim de uma mulher e, no lugar do ramo de carvalho aos pés do altar, podemos encontrar uma criança pequena, tentando alcançar a mão caída da mulher.

A informação que encontrei diz que o trabalho do cemitério de Agramonte (em baixo, à esquerda, a preto e branco) é da autoria de Teixeira Lopes, mas não tem qualquer referência à autoria da peça que se encontra em Coimbra (em baixo, à direita, a cores).



Ambas são belíssimas e, como quase todas as peças que tenho encontrado nos nossos cemitérios, mereciam maior atenção e destaque.


3.8.11

Livro: Sobre a História da Morte no Ocidente

Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média é um livro que recomendo sem hesitações; composto por um conjunto de comunicações e ensaios escritos pelo historiador e medievalista francês Philippe Ariès (Α:1914 - Ω:1984), este livro, publicado em França em 1975, já vai na 4ª edição portuguesa, pela Teorema.

Neste trabalho, Ariès define quatro diferentes posturas da sociedade em relação à Morte e caracteriza-as detalhadamente através de exemplos.

Começa por apresentar-nos aquilo que ele designa por Morte Domesticada, a prática reinante durante a primeira Idade Média em que não só o moribundo tinha conhecimento do seu final próximo como o preparava cuidadosamente, reunindo amigos e familiares em torno do leito de morte e fazendo o seu testamento.

Ainda que tenham existido alterações ao longo dos tempos, é a partir dos séculos XI e XII que esta Morte Domesticada se transforma na Morte de Si Próprio; se até então o homem concebia a morte como a passagem para um estádio onde deveria residir até à chegada do Juízo Final - onde as suas acções em vida seria analisadas, pesadas e lhe seria então atribuída a eternidade no Paraíso ou no Inferno - nesta fase passa a conceber que esse juízo e decisão ocorrem no momento da morte.
As pestes que grassaram pela Europa durante a Idade Média acabaram por levar à criação dos Ars Moriendi - a Arte de Bem Morrer - publicados nos séculos XV e XVI.
Também é interessante perceber as alterações que vão sucedendo aos rituais fúnebres durante a Idade Média, uma vez que estes passam de laicos a terem uma intervenção cada vez maior por parte da Igreja, com a criação da Missa de Corpo Presente, por exemplo, ou o acompanhamento dos funerais por padres, frades e outros elementos da Igreja.

É já no século XVIII que a Morte de Si Próprio dá lugar à Morte do Outro, onde a saudade e a lamentação vão possibilitar o desenvolvimento do culto dos mortos nos séculos que se seguiram e cujo exemplo mais imediato é a criação dos cemitério românticos (vitorianos).
Esta conversão da Morte de Si Próprio na Morte do Outro está assente em duas grandes alterações que ocorreram no século XVIII: a complacência com a ideia da morte e a alteração da dinâmica entre o moribundo e os seus familiares e amigos, inclusive na forma como os testamentos passam a ser feitos.

A quarta e última fase é a da Morte Interdita: escondemos os nossos moribundos em hospitais e lares onde eles morrem sozinhos, criticamos o culto dos mortos, as visitas aos cemitérios, passamos a adoptar a cremação por esta ser mais definitiva, evitamos chorar em público e temos horror do luto.
É nesta fase que o autor nos coloca.

Todos os ensaios tem inúmeros exemplos e citações, que ilustram perfeitamente os argumentos de Ariès e nos ajudam a perceber as suas conclusões sem dificuldade.
Existem ainda vários ensaios dedicados apenas a praticas específicas ou curiosidades ligadas à morte, aos mortos ou às honras fúnebres nas diversas fases, como Os Milagres dos Mortos, Huizinga e os Temas Macabros, A Vida e a Morte para os Franceses do Nosso Tempo, etc.

E talvez seja aqui que vou colocar o único defeito que tenho a apresentar relativamente ao livro: tem uma componente francesa muito forte.
Ainda assim, mesmo quando Ariès fala especificamente sobre a cultura e pratica francesas, todas as observações e conclusões são-nos suficientemente próximas para que a leitura se faça sem hesitações e a informação nos seja útil.

Existem mais obras deste autor que posso recomendar, em especial The Hour of Our Death - onde o autor volta a dissertar sobre estas quatro fases com maior profundidade, até porque o este é de 1981, ou seja, seis anos depois da publicação de Sobre a História da Morte no Ocidente - mas não encontrei mais nenhum publicado em português.

Termino agradecendo à editora Teorema a publicação de mais um livro corajoso: acredito que os livros sobre a morte não serão os mais procurados nas livrarias, mas é importante que estas obras sejam disponibilizadas em português.

21.7.11

Os Homens do Saco Escoceses

No seguimento do anterior artigo sobre os Homens do Saco, onde é apresentado um resumo histórico da actividade dos Ladrões de Corpos em Inglaterra, Irlanda e Escócia, fica a ligação para o site Echoes of the Resurrection Men da responsabilidade do professor Martyn Gorman da Universidade de Aberdeen, na Escócia.

Este excelente recurso disponibiliza um conjunto de mapas, baseados na tecnologia Google Maps, que permite perceber padrões de comportamento dos ressurreicionistas, uma vez que estão lá assinalados os Mort Safe que podem ser encontrados nos cemitérios escoceses, assim como a localização das Escolas de Anatomia (principais clientes dos Homens do Saco), os locais onde foram erguidas Torres de Vigia ou Casas de Mortos (utilizadas para manter os cadáveres e aguardar os primeiros sinais de decomposição, de forma a garantir a sua inutilidade para os ladrões de corpos, uma vez que estes necessitavam de espécimes frescos).
Foram ainda constituídos mapas relativos a Inglaterra e à Irlanda.
É possível aceder a fotografias dos artefactos assinalados e a uma base de dados com informação diversa, o que enriquece ainda mais este fantástico site.

Um recurso a usar e abusar e, claro, divulgar.

19.7.11

Nós

I

Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E a Cólera também andaram na cidade,

Que esta população, com um terror de lebre,

Fugiu da capital como da tempestade.


Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas

(Até então nós só tivéramos sarampo).
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas

Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!


Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos

Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga.


Na parte mercantil, foco da epidemia,

Um pânico! Nem um navio entrava a barra,

A alfândega parou, nenhuma loja abria,

E os turbulentos cais cessaram a algazarra.


Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados,

Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!

Como um domingo inglês na city, que desterros!


Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejecções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,

Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!


Uma iluminação a azeite de purgueira,

De noite amarelava os prédios macilentos.

Barricas de alcatrão ardiam; de maneira

Que tinham tons de inferno outros armamentos.


Porém, lá fora, à solta, exageradamente

Enquanto acontecia essa calamidade,

Toda a vegetação, pletórica, potente,

Ganhava imenso com a enorme mortandade!


Num
ímpeto de seiva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,

Como uma universal celebração de bodas,

Amaram-se! E depois houve soberbos partos.


Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,

Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas,

E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.


Ele, dum lado, via os filhos achacados,

Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!

E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,

E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!


E o campo, desde então, segundo o que me lembro,

É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,

Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!

(...)

III

Tínhamos nós voltado à capital maldita,

Eu vinha de polir isto tranquilamente,

Quando nos sucedeu uma cruel desdita,

Pois um de nós caiu, de súbito, doente.


Uma tuberculose abria-lhe cavernas!

Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!
E eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas,
Com que se despediu de todos e do mundo!

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!

Não sei dum infortúnio imenso como o seu!
Vi o seu fim chegar como um medonho muro,

E, sem querer, aflito e atónito, morreu!


De tal maneira que hoje, eu desgostoso e azedo

Com tanta crueldade e tantas injustiças,

Se inda trabalho é como os presos no degredo,

Com planos de vingança e ideias insubmissas.


E agora, de tal modo a minha vida é dura,

Tenho momentos maus, tão tristes, tão perversos,

Que sinto só desdém pela literatura,

E até desprezo e esqueço os meus amados versos!

13.7.11

Monumentos Memoráveis: Torre de O'Connell

O maior cemitério de Dublin é o cemitério Prospect, em Glasnevin, na margem norte do rio Liffey.
A localização do cemitério acabou por rebaptizá-lo e ele é hoje conhecido como Glasnevin.

Fundado em 1832, rapidamente se tornou no cemitério de eleição dos irlandeses católicos, ficando o cemitério de Mount Jerome, situado na margem sul, para o uso dos protestantes.

Sombreando o portão principal, ao lado da capela, uma enorme torre redonda de cinquenta e um metros de altura eleva-se muito acima dos demais memoriais, sendo mesmo a mais alta torre circular existente em toda a Irlanda.

A Torre O'Connell foi desenhada por George Petries em honra de Daniel O’Connell (Α:1775 - Ω:1847), um reconhecido líder político irlandês que ficou conhecido como "O Libertador" e ao qual foi dedicada a principal avenida da cidade.

Tendo morrido em Génova, durante uma peregrinação a Roma, Daniel O'Connell pediu que o seu coração fosse aí guardado, mas que o corpo fosse transportado de regresso a Dublin, na amada Irlanda, e enterrado no cemitério católico de Glasnevin.
Em 1869, o corpo foi transladado do local original para uma cripta sob a enorme torre, construidas em sua memória.

A torre está rodeada de um fosso circular, ao qual é possível aceder descendo uma escadaria estreita.
Na parede externa do fosso, à semelhança do que pode ser visto nos cemitérios londrinos (recordo o famoso Circle of Lebanon no cemitério de Highgate), existe um conjunto de portas de metal que permitem o acesso a criptas privadas.
No anel central, sob a enorme torre, existe uma cripta aberta, guardada apenas por uma grade de metal, onde se pode ver o caixão que contem os restos mortais do herói da cidade.

Mais tarde, quando a capela foi construida, tiveram o cuidado de construir o campanário no mesmo formato circular, no entanto, é impossível competir com o gigantismo da Torre de O'Connell.

11.7.11

Um Cadáver

Lembras-te, meu amor, de uma coisa que vimos
Nessa manhã de Verão, suave:
Na curva do caminho um pútrido cadáver,
Num leito de pedras, sozinho,

De pernas para o ar, qual lúbrica mulher,
A arder, transpirando venenos,
Abria de uma forma cínica, insolente,
Cheio de exalações, o ventre.

Na podridão brilhava o sol com a certeza
De quem parecia cozinhá-lo,
Pra devolver com juros à mãe-natureza
Tudo o que ela um dia juntara;

E o céu contemplava a carcaça soberba,
Como flor a desabrochar.
Era um fedor tão forte, que até sobre a erva
Julgaste que ias desmaiar.

E as moscas zumbiam no ventre asqueroso
De onde saíam escuras tropas
De larvas, que escorriam num fluido viscoso
Por entre aqueles vivos trapos.

Tudo aquilo subia a descia, qual vaga
Que num momento rebentasse;
Era como se o corpo, num alento vago,
Noutros milhões ressuscitasse.

E daí emanava estranha melodia,
Como de água que corre, do vento,
Ou do grão que o moleiro no seu movimento
Agita e revolve no crivo.

As formas apagavam-se, mera ilusão,
Um esboço que não se destaca
Numa tela esquecida, e que o artista acaba
Somente pla recordação.

Atrás das rochas vi uma cadela inquieta
Fixando em nós um mau olhar,
À espera de ir buscar à ossada abjecta
O pedaço que ali deixára.

- No entanto serás como esta porcaria,
Como esta horrível infecção,
Ó estrela dos meus olhos, sol da minha vida,
Tu, meu anjo, minha paixão!

Sim! rainha das graças, assim! quando fores,
Pouco depois da extrema-unção,
Repousar sobre a erva e as carnudas flores,
Ganhar bolor no teu caixão.

Então dirás - ó bela! - aos vermes que comerem
Com muitos beijos o teu rosto,
Ter eu guardado a forma e a divina essência
Dos meus amores já decompostos!


10.7.11

Livros: Memento Mori

Durante a Idade Média praticou-se o chamado enterramento ad sanctos, ou seja, o mais próximo possível de relíquias ou de altares, o que significa que as inumações eram realizadas no interior das igrejas, nos seus átrios e claustros.

Esta prática contrariava o costume deixado pelos romanos de inumar-se longe dos locais povoados; prática também defendida pelo cristianismo primitivo.

As inumações ad sanctos foram abandonadas no século XVIII, em favor de uma política mais próxima da romana, seleccionando-se locais distantes das zonas populosas para se constituírem locais específicos de enterramento: os nossos cemitérios românticos (vitorianos) que, por vários motivos, se tornaram locais seculares, ainda que continuem a ocorrer funerais religiosos.

Recordo que a língua inglesa permite distinguir dois tipos diferentes de cemitérios: graveyard ou churchyard e cemetery. O primeiro usa-se, normalmente, para designar os terrenos em volta das igrejas, onde eram realizadas as inumações até ao final século XVIII, início do século XIX, e o segundo é utilizado relativamente aos cemitérios românticos, do século XIX em diante.

Um dos vários livros de fotografia da autoria do excelente fotógrafo Simon Marsden chama-se Memento Mori e, ainda que seja considerado um álbum de fotografia cemiterial, chamo a atenção para o facto das imagens deste livro serem de igrejas e átrios de igreja ingleses; ou seja, os locais onde eram realizadas as inumações ad sanctos.

As imagens são, como sempre, de uma beleza etérea, quase sobrenatural, onde os exteriores se apresentam no preto e branco exótico, característico dos trabalhos do autor, graças ao uso da técnica de infravermelhos.
Os interiores são aqui apresentados a cor, o que não acontece com frequência nos livros de Marsden, mas - com a excepção dos vitrais, que nos são apresentados em todo o seu esplendor colorido e luminoso - o fotógrafo apresentar-nos imagens quase monocromáticas de grande riqueza; contrariamente ao que, por vezes, acontece na fotografia cemiterial, o uso da cor não tem o efeito distractor que nos leva a ignorar a peça de arte, em favor de um ramo de flores coloridas, por exemplo.

Para além das imagens, Marsden escolheu um conjunto de citações de autores conhecidos e que escreveram sobre a Morte ou, pelo menos, trataram-na sem embaraço nos seus trabalhos, como Charles Dickens, Emily Brontë, Emily Dickinson ou Edgar Allan Poe.

Ainda que não seja o meu trabalho favorito de Simon Marsden é, para todos os fãs de fotografia cemiterial, uma obra a adquirir.