28.5.11

A Morte no Estado Novo

Quando li o livro Cemitérios de Lisboa: Entre o Real e o Imaginário, de Francisco Moita Flores, um dos capítulos que mais me impressionou foi o dedicado à simbólica do Estado Novo presente nos cemitérios de Lisboa.

Mais do que criar uma simbologia própria, ou abraçar parte da simbologia promovida no século XIX, durante os anos do Estado Novo, a Morte foi apagada - escondida.

Os mausoléus tornaram-se em blocos de pedra lisa, sem altos ou baixos relevos; tectos direitos, ausência de anjos e santos - à excepção de uma ou outra estátua de Maria, de uma ou outra cruz - e portas de metal compactas.
Desaparecem os pequenos vitrais coloridos, desaparecem os epitáfios e inscrições nas paredes dos sepulcros.

Ainda assim, aquilo que é realmente revelador é o espaço dedicado ao jovens soldados que morreram durante a Guerra do Ultramar, por terras de África.

Portugal ia, obviamente, ganhar a Guerra e manter as províncias ultramarinas para sempre: esse era o espírito da época e a mensagem repetida pela forças políticas e pela muito activa e eficaz máquina de propaganda salazarista.

O controlo da informação era uma ferramenta essencial e, com a ajuda da censura, os números revelados sobre as baixas nacionais no Ultramar ficavam aquém dos reais.
Para isso, ajudou não existir um cemitério específico para os combatentes portugueses: faltou-nos um Arlington, por exemplo. Não porque não o pudessem ter criado, mas tal espaço evidenciaria a quantidade de vidas que se estavam a perder; e, já se sabe, quando as baixas de Guerra são grandes é porque não se está a ganhar.
Mas Portugal ganhava. Orgulhosamente só. Ou assim nos diziam...

Para manter essa ideia era necessário mascarar a realidade dos números, sempre crescente, dos mortos em combate.



Para isso recorreram a três abordagens diferentes.

Parte dos mortos ficaram em África.
Exemplo disso é esta Reportagem Especial da SIC, onde um grupo de jornalistas se deslocou até Mueda, em Moçambique, e visitou um cemitério esquecido, onde estão enterrados combatentes da Guerra do Ultramar que nunca regressaram a Portugal.

Uma das formas que o Estado Novo encontrou para não efectuar a trasladação dos corpos foi através da cobrança do serviço: quem quisesse fazer regressar o corpo do filho, do marido, do irmão, do pai, tinha de pagar um valor elevado; caso contrário, o corpo seria enterrado em cemitérios em África.
Muitos ficaram por lá.

Outra forma utilizada para mascarar, reduzindo, o número de mortos era dispersá-los: considerando que os corpos eram trazidos pelos familiares, estes eram levado para os cemitérios civis das diversas localidades, espalhados por todo o país, enterrados nos jazigos ou campas de família não sendo, normalmente, identificados como vítimas da Guerra.
Eram apenas mais uns familiares falecidos.

A terceira opção era esconder os que não podiam ser enviados para as aldeias ou deixados em África.
Prova disso é a forma como foi escolhido e construído o talhão dos combatentes no cemitério do Alto de São João, em Lisboa.

O talhão seleccionado é um espaço estreito, bem mais baixo que restante cemitério e escondido por um muro alto, no topo do qual está edificado um conjunto coeso de mausoléus altos, que funcionam como uma parede, impedindo a visibilidade.
Existem apenas três espaços de acesso a este talhão e estão estrategicamente colocados de forma a não permitir que se perceba a quantidade de pedras tumulares.

Na zona do talhão em que este é mais estreito, as filas são de apenas duas campas e conforme o talhão se vai alargando passamos a três, quatro, cinco.

No livro de Moita Flores existem algumas imagens deste espaço, mas em 1993 a realidade retratada foi muito diferente da que presenciei: um ar de abandono e esquecimento marca todas as campas, onde a chuva e o vento apagaram os stencils que, pintados na pedra, serviam para identificar os mortos e que ainda estavam bem visíveis no início da década de noventa.

Desapareceram também as floreiras de mármore e as flores e tudo o que se vê é algum capim e as pedras escuras e despidas.

Ao contemplar este talhão percebe-se a capacidade de manipulação das políticas e propagandas do Estado Novo.

Quem diria, ao olhar para este espaço, que na Guerra do Ultramar morreram cerca de nove mil pessoas?



23.5.11

Cemitério de Mount Jerome - II

Apesar de já ter escrito no Mort Safe sobre o cemitério irlandês de Mount Jerome, em Dublin, não posso deixar de voltar a mencioná-lo, considerando que - finalmente - o visitei.


Foi uma visita curta, de apenas algumas horas, mas que me ficará na memória.
Sob um céu ameaçadoramente carregado de nuvens, a manhã foi salpicada por chuviscos que deixaram as pedras brilhantes e lavadas.

O espaço, apesar de visivelmente já não estar abandonado, continua com o glamour oferecido pela decandência de décadas de clima agreste e negligência.

Lápides em pedra escura e cruzes celtas cobrem o terreno, destacando o facto de que existe pouquíssima estatuária presente.
Também não se vêm tantos mausoléus como noutros cemitérios europeus, sendo que a maioria das câmaras de enterramento encontram-se no subsolo.

Algumas das peças mais marcantes e afamadas, como a estátua do cão - que dizem representar um cão real, que uivava enquanto o dono se afogava - são realmente imponentes.

Um dos pontos altos é o pequeno café, onde uma simpática senhora vende café, chá e scones caseiros, ainda mornos.
Essenciais ao visitante cansado e com frio.

Ainda tive a oportunidade de ouvir, ao longe, os lamentos de uma gaita de foles, que acompanhava uma procissão funerária, uma vez que este cemitério, apesar de antigo e quase lotado, ainda se encontra activo.

Repito os avisos que fui lendo em vários sites: cuidado ao andarem entre as campas e a lápides; o estado de deterioração do espaço é grande o que torna perigosas as distrações.

Resumindo: vale muito, muito a pena uma visita.


21.5.11

Igreja de St. Michan

Na cidade irlandesa de Dublin, na margem norte do Liffey fica a igreja de St. Michan, a mais antiga paróquia desse lado do rio, fundada no ano de 1095.

Tendo sido renovada diversas vezes ao longo dos séculos, as suas principais fases de recuperação datam de 1685 e 1825. E é essa data do século XVII que se considera como tendo sido a data de construção das agora tão famosas criptas de St. Michan.

Segundo a informação fornecida no local, existem cinco criptas sob a igreja, às quais é possível aceder por portas de metal, dispostas em volta da igreja.

As criptas foram construidas com blocos de calcário, criando o ambiente perfeito para a mumificação de cadáveres e a preservação dos seus caixões: temperatura constante e ausência de humidade.

Faz parte da visita guiada a descida a duas das cinco criptas existentes, mas é proibida a captação de imagens.
As criptas visitadas são compostas por um corredor central, alinhado com as escadas, ladeado por diversas câmaras particulares. Algumas destas câmaras não se encontram iluminadas por ainda estarem em uso, segundo nos informou o guia.

A cripta onde os corpos mumificados se encontram expostos é mais pequena, contendo apenas duas câmaras de cada lado. Aparentemente, as visitas a estes cadáveres fazem-se desde a época vitoriana, sendo que se julga que o próprio Bram Stoker (autor do romance Dracula, publicado em 1897) as visitou na companhia da sua família.

A pouca informação disponível, por essa altura, fez com que se criassem lendas e interpretações incorrectas sobre as quatro múmias em exposição. Uma delas, aquela que é normalmente acariciada pelos visitantes, é descrita como sendo um cruzado; mas data do século XVII (recorde-se que se considera que a Nona Cruzada -a última - teve lugar no século XIII).

Na segunda cripta, com um corredor central mais longo, contendo mais câmaras, podem ser vistos os caixões dos irmãos Sheare, heróis da luta pela independência da Irlanda, presos pelas tropas britânicas devido ao seu envolvimento na revolução de 1798, e que foram condenados à morte, tendo sido enforcados, esvicerados e esquartejados.

Pode ainda ser vista uma outra câmara que pertenceu a uma família nobre, os Earl's de Leitrim, cujos caixões são todos (quase) delicada e profusamente enfeitados. Podem ser observados através de um conjunto de buracos feitos numa pesada porta de madeira.

Abaixo pode ser visionado um vídeo contendo mais imagens e informação sobre as criptas e os seus mortos.



Nas traseiras da igreja, junto das portas de entrada das criptas, espraia-se um pequeno cemitério. Pedras tumulares antigas, detalhes perdidos pelo efeito da erosão, estendem-se por entre relva e delicados malmequeres.


Para quem estiver em Dublin, ou a planear uma viagem até lá, este é um local a não perder.

16.5.11

Chaloner's Corner

Uma das atracções turísticas mais conhecidas da cidade irlandesa de Dublin é o campus de Trinity College.
A diversidade arquitectónica dos seus magníficos edifícios marca a passagem dos anos e permite identificar as diferentes épocas de crescimento da universidade.

Para o visitante desprevenido será certamente uma surpresa encontrar um pequeno (muito pequeno) cemitério num dos cantos de um dos edifícios mais antigos.


Conhecida como Chaloner's Corner, esta pequena esquina é um condensado cemitério que dá abrigo a alguns notáveis académicos, especialmente o Dr. Luke Chaloner, que lhe deu o nome.

Chaloner foi o primeiro reitor da universidade de Trinity, tendo sido aí enterrado em 1613. Desde então, esta pequena esquina tem sido pontualmente utilizada para inumar posteriores reitores e alguns docentes.
Este cemitério está ainda em uso, sendo que a mais recente inumação teve lugar em 1994.

Pode ainda ser observada uma sombria escadaria que tem ligação directa às criptas por baixo da capela.