25.6.18

Átropos no Cemitério Romântico

No passado dia 16 de Junho, no âmbito do ciclo de palestras "Um Objecto e Seus Discursos", organizado anualmente pela Câmara Municipal do Porto, estive nessa cidade para falar de um objecto existente num monumento funerário do cemitério de Agramonte, na secção privada da Ordem Terceira do Carmo.

Fotografia gentilmente cedida pela Câmara Municipal do Porto
Numa conversa informal, moderada por Alda Bessa, e com a presença também da Prof.ª Marta Várzeas, especialista em literatura clássica, falámos um pouco das Parcas, as figuras mitológicas gregas responsáveis pelos destinos dos Homens, em especial de Átropos, que é quem corta o fio e define o fim.

Juntei algumas notas sobre o tema, sobre a forma como a cultura clássica grega influenciou a criação e a decoração dos cemitério românticos, que partilho convosco abaixo.

Os meus parabéns à Câmara Municipal do Porto pela excelente iniciativa e à Alda Bessa, pela ousadia de propor um objecto no interior de um cemitério.


Quando pensamos em cemitérios de matriz cultural romântica, concebidos no século XIX, não podemos excluir a constatação que a cultura britânica teve uma fortíssima influência no desenho desses espaços; especialmente nos locais continentais onde se distinguiu por uma forte presença, como na cidade do Porto.
De facto, a mudança de cemitérios paroquiais – apertados, familiares, crescendo em volta das igrejas – para cemitérios seculares – isolados e fora das malhas habitacionais das cidades – obrigou a repensar esses lugares e a considerar soluções diferentes para a sua utilização. Os princípios higienistas, defendidos pelas Luzes do século XVIII, e o crescimento populacional das cidades lotaram os antigos locais de enterramento (cemitérios paroquiais e interiores de igrejas) e obrigou a encontrar soluções alternativas.
A possibilidade de criar algo original para os enterramentos dos mortos levou ao desenvolvimento de singulares ideias conceptuais; algumas inspiradas na Antiguidade e influenciadas directamente pelos revivalismos artísticos e arquitectónicos que marcaram o período de Oitocentos: os revivalismos clássicos e egípcio. Um dos exemplos mais curiosos foi a proposta da Grande Pirâmide de Londres (1842): uma construção gigantesca, inspirada nas pirâmides egípcias, imaginada para ter capacidade de albergar cerca de cinco milhões de mortos, acomodados em noventa e quatro camadas; o que lhe daria uma altura superior à da catedral de St. Paul – se esta ideia tivesse sido aceite, hoje observaríamos uma paisagem urbana bem diferente em Londres e, mais significante ainda, os cemitérios contemporâneos seriam por todo o mundo muito diferentes.
Em 1830, a General Cemetery Company de Londres decidiu desenhar os novos cemitérios seculares e os jardins paisagísticos ingleses foram uma das suas maiores influências, assim como o popular e bem-sucedido modelo parisiense do cemitério de Père Lachaise. Criado em 1803, sob a forte ascendência dos aclamados jardins paisagísticos de Stowe, que recriavam os Campos Elísios descritos pelo poeta Virgílio na Eneida (imagem perpetuada pelo célebre poeta Gilbert West, em 1732, na descrição que fez dos famosos jardins do seu tio Lord Cobham). Construído nos terrenos que haviam pertencido ao padre jesuíta confessor de Luís XIV, o cemitério venceu a desconfiança dos parisienses e reinava como o mais cobiçado local de enterramento da Cidade das Luzes, graças a uma manobra publicitária que permitiu lá enterrar Molière e La Fontaine, assim como os malogrados amantes Abelardo e Heloísa, elevando o estatuto do cemitério.
Os seus serpenteantes caminhos em pedra, árvores frondosas e plano inclinado, permitem invocar imagens de paz e serenidade, materializando o conceito dos cemitérios-jardim que hoje conhecemos: uma versão terrena e utilitária dos Campos Elísios e de Arcádia, em comunhão harmoniosa com a natureza. É, por isso, impossível fugir a essas referências a Arcádia e aos Campos Elísios quando visitamos os cemitérios ingleses mais representativos deste estilo, como Kensal Green ou Highgate, os mais emblemáticos dos cemitérios vitorianos que circundam a cidade de Londres, conhecidos como os Sete Magníficos.
A constância das referências da Antiguidade nos cemitérios românticos pode ser calculada na forma como eles foram projectados como cemitérios-jardim, onde ainda hoje a vegetação abundante se mistura com as pedras dos jazigos, escondidos entre caminhos ziguezagueantes, reconstruindo os paraísos utópicos de Arcádia e dos prados eternos dos Campos Elísios. Porém, é também possível encontrar essas referências nas próprias construções e nos elementos decorativos que preencheram os cemitérios nos anos seguintes à sua construção; mesmo naqueles que, como aconteceu em Portugal, fugiram à criação dos cemitérios-jardim, optando por modelos mais ordenados e menos orgânicos. Foram repescadas as pirâmides e obeliscos egípcios e as colunas e frontões dos templos greco-romanos. As decorações, a apropriação de imagens antigas e conceitos clássicos, toda essa simbologia agora recontextualizada no espaço da Morte, no interior dos cemitérios, renovou a linguagem representativa da morte com o objectivo de comunicar com aqueles que visitavam e observavam as campas.
A cultura clássica, que continua a fazer parte da formação e educação das classes altas, invade também o espaço cemiterial e aparece na decoração dos jazigos, com mais ou menos enfase, dependendo também da inclinação religiosa do dono do jazigo. Há vários exemplos, mais ou menos comuns, que podem ainda hoje ser encontrados: os lacrimais romanos, as urnas funerárias, o alfa e o ómega do alfabeto grego, mas também referências egípcias com esfinges e papiros – estas menos comuns em Portugal.
A apropriação dos clássicos passou também pela apropriação de personagens, especialmente de duas delas: Chronos, o Pai-Tempo, representado por um velho de longas barbas que agarra uma ampulheta ou uma gadanha; e Átropos, representada por uma mulher com um fio e uma tesoura. Das três parcas encarregues dos destinos dos homens é Átropos quem determina o fim da vida humana e corta o fio que a simboliza. (As outras parcas são Cloto, representada com um fuso e responsável pelos nascimentos e partos, e Láquesis, que enrola e estica o fio, determinado os atributos dos homens.)
A simbologia específica da morte foi crescendo e tornando-se mais comum: a gadanha de Chronos começa a ser representada de forma isolada, sem recorrer à figura humana; a ampulheta aparece também sozinha e ganha asas (de pomba ou de morcego – diurnas ou nocturnas). Aparece a tocha invertida, os salgueiros-chorões, a coluna ou arco quebrado, o caduceu tombado, a papoila dormideira, a caveira (que já fazia parte deste universo nas representações de Danse Macabre da época medieval), a árvore com um galho partido, esqueletos e ossadas – e a tesoura e o fio cortado, já sem a figura feminina de Átropos.
Os símbolos da morte sofrem, pois, uma estilização: ícones desapartados da figuração antropomórfica, seguindo de perto, afinal de contas, a essência mnemónica, simbólica e abstracta da morte.