12.8.12

Altar das Caveirinhas

Em território nacional existem várias capelas dos ossos, concentradas no Alentejo e no Algarve. 
Já aqui mencionámos algumas, como a Capela dos Ossos de Évora - a mais famosa capela dos ossos nacional, sendo ainda a de maiores dimensões - ou a capelinha de Alcantarilha.
Caveira manchada de fumo de vela    
 Capela de Alcantarilha





Para além das existentes abaixo do Tejo, há ainda registos que referem a existência de uma capela dos ossos a norte desse rio, na cidade de Coimbra, referenciada como sendo a mais antiga do nosso país, destruída no século XIX para dar lugar a uma nova estrada. 
Talvez não tivesse sido esse o único motivo que levou à destruição dessa capela, uma vez que estes locais repletos de ossadas, tão em voga nos séculos anteriores, foram sendo o palco principal de cultos das alminhas, em parceria com os painéis de azulejos ilustrados com anjos ou imagens de Morte ou da Ascensão aos Céus. 
Velas eram deixadas junto dos restos mortais dos antepassados, num misto entre a promessa, a prece e o pedido. Rezando para que os familiares e amigos conseguissem encontrar a paz ou, caso já o tivessem feito, intercedessem pelos vivos junto de entidades superiores para a concessão de favores e auxílio. 
O Culto das Alminhas do Purgatório teve uma expressão muito grande em Portugal, bastante superior a outros países católicos com comportamentos e culturas semelhantes à nossa.

Até há pouco tempo, esta era a única capela dos ossos a norte do Tejo de que tinha conhecimento. 
As principais fontes sobre esta temática apenas mencionavam a capela de Coimbra, no entanto, ainda que não fosse uma capela, existiu mais um destes Memento Mori a norte do Tejo; mais que isso, a norte do Douro.
Altar das Caveirinhas, circa 1909
Na antiga Igreja da Misericórdia da Póvoa do Varzim existiu um altar constituído por dezenas de pequenas caixas de madeira, empilhadas, contendo caveiras.

As caixas de madeira tinham molduras na frente, com desenhos simples e a identificação e datação dos restos mortais.
Em 1909 - um ano depois do regicídio e um ano antes da implantação da República - o altar, conhecido como Altar das Caveirinhas, foi desmantelado. Esse desmantelamento ocorreu num contexto de construção de uma nova igreja, em substituição da antiga.
Na realidade, devemos ter ainda em atenção outros factores, como a pressão exercida pela classe intelectual, sob a qual a necessidade de ruptura com os antigos costumes e crenças, associada à secularização da sociedade que seria advogada e seguida durante a Primeira República, teve muito peso na decisão; assim como a pressão dos elementos do clero, incomodados desde há anos pela conotação pagã associada ao culto das alminhas.
Talvez estes factores tenham também tido influência na destruição da capela de Coimbra, ainda que a justificação oficial seja a construção de uma nova estrada.
Historiadores e etnólogos - que, naturalmente, se opunham ao desmantelamento do altar - conseguiram realizar algumas fotografias e registos, antes da maioria dos restos mortais serem levados para o cemitério de Póvoa do Varzim.
Conseguiu-se ainda preservar algumas das caveiras - poucas - numa versão muito mais modesta deste altar, na chamada Casa das Caveirinhas, uma pequena e discreta capelinha junto da nova igreja. 
Também esta acabou por ser fechada nos anos 90 do século XX, acabado assim com os últimos vestígios do altar.
Um dos aspectos mais interessantes desta peça é a sua originalidade, não existindo - até ver - nada semelhante no nosso país.
Imagem do ossário de St. Hilaire, Marville, França
No entanto, como pode ser observado pela imagem, existe uma semelhança bastante grande entre as caixas do Altar das Caveirinhas de Póvoa do Varzim e as do ossário de St. Hilaire de Marville, em França. 
Em ambos os locais, a moldura frontal das caixas é ornamentada e contém texto que serve para identificar e datar os restos mortais nelas preservados.
Desconheço se teria existido algum contacto entre os residentes destes dois locais que possa ter servido de influência ou se estas caixinhas seriam comummente utilizadas para esta finalidade, apesar de tão poucas terem chegado até nós. Ainda assim, é de notar que existiu um surto de emigração das gentes da Póvoa do Varzim durante o século XIX, sendo que o dinheiro enviado por esses emigrantes permitiu a renovação de igrejas e retábulos durante a segunda metade do século XIX.
As caixinhas de caixinhas de St. Hilaire contêm caveiras de cidadãos que morreram entre 1780 e 1860. Algumas das datas que consegui perceber através de fotografias do Altar das Caveirinhas colocam as caveiras de Póvoa do Varzim como pertencentes a cidadãos que morreram nas décadas de 40 e 50 do século XIX.
Teriam alguns desses emigrantes partido para perto de Marville e pedido a construção deste altar, de acordo com o que vira por terras de França?

É ainda de realçar que, quer na Póvoa do Varzim, quer em St. Hilaire, as caveiras estão claramente identificadas.
Altar na Casa das Caveirinhas, circa 1996
E é esta uma das grande diferenças entre estas caixinhas de caveiras e os ossários e capelas dos ossos: a identificação versus o anonimato.
As capelas de ossos e ossários são constituídos por ossadas anónimas, que permitem - ainda hoje - que os vivos que as visitavam se sintam identificados com os restos mortais espalhados pelas paredes. 
Estas caveiras em caixinhas estão individualizadas, nomeadas, representam pessoas concretas, sendo que assim são sempre vistas como "outros" pelos visitantes: «esta era... esta foi...»
Será assim correcto ver nestes altares os mesmos objectivos da construções anónimas, que os precederam? 
Capela dos Ossos, Évora (detalhe)
Se considerarmos as datas de construção, podemos pensar nestas ossadas não anónimas como a evolução natural das capelas de ossadas anónimas, assim como estas são uma evolução dos carneiros e ossários primitivos?
Se pensarmos no contexto histórico, o cemitério velho da Póvoa do Varzim data de 1866, ou seja, é posterior à datação de morte das caveiras.
Seria interessante perceber a amplitude do intervalo de tempo de recolha das caveiras da Póvoa e compará-lo com o intervalo de St. Hilaire.
Serão estas caixinhas uma versão mais modesta das caixas de reliquias de santos, numa versão para o homem comum? A verdade é que, à semelhança do que era feito durante a Idade Média com as relíquias de santos, as caveiras destas gentes da Póvoa foram identificadas, guardadas em caixas quais relicários, colocadas num altar dentro da igreja e veneradas com velas e orações.

Sem dúvida que, caso tivesse sido preservado à semelhança das restantes Capelas dos Ossos nacionais, este Altar das Caveirinhas faria as delícias de historiadores, etnólogos e tafófilos, nacionais e estrangeiros.


Nota Final: Os meus agradecimentos à Dr.ª Deolinda Carneiro, Directora do Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim, pela cedência das imagens do Altar e da Casa das Caveirinhas.