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11.7.11

Um Cadáver

Lembras-te, meu amor, de uma coisa que vimos
Nessa manhã de Verão, suave:
Na curva do caminho um pútrido cadáver,
Num leito de pedras, sozinho,

De pernas para o ar, qual lúbrica mulher,
A arder, transpirando venenos,
Abria de uma forma cínica, insolente,
Cheio de exalações, o ventre.

Na podridão brilhava o sol com a certeza
De quem parecia cozinhá-lo,
Pra devolver com juros à mãe-natureza
Tudo o que ela um dia juntara;

E o céu contemplava a carcaça soberba,
Como flor a desabrochar.
Era um fedor tão forte, que até sobre a erva
Julgaste que ias desmaiar.

E as moscas zumbiam no ventre asqueroso
De onde saíam escuras tropas
De larvas, que escorriam num fluido viscoso
Por entre aqueles vivos trapos.

Tudo aquilo subia a descia, qual vaga
Que num momento rebentasse;
Era como se o corpo, num alento vago,
Noutros milhões ressuscitasse.

E daí emanava estranha melodia,
Como de água que corre, do vento,
Ou do grão que o moleiro no seu movimento
Agita e revolve no crivo.

As formas apagavam-se, mera ilusão,
Um esboço que não se destaca
Numa tela esquecida, e que o artista acaba
Somente pla recordação.

Atrás das rochas vi uma cadela inquieta
Fixando em nós um mau olhar,
À espera de ir buscar à ossada abjecta
O pedaço que ali deixára.

- No entanto serás como esta porcaria,
Como esta horrível infecção,
Ó estrela dos meus olhos, sol da minha vida,
Tu, meu anjo, minha paixão!

Sim! rainha das graças, assim! quando fores,
Pouco depois da extrema-unção,
Repousar sobre a erva e as carnudas flores,
Ganhar bolor no teu caixão.

Então dirás - ó bela! - aos vermes que comerem
Com muitos beijos o teu rosto,
Ter eu guardado a forma e a divina essência
Dos meus amores já decompostos!


13.4.11

Morte Magnifica

The cemetery photographs by David Robinson are filled with mystery, melancholy, sly humor, irony, hushed grief, the peace of final silences, sometimes a throttled anger at the fact of mortality, and evena strange wistfulness, but they successfully avoid fulfilling any of the usual expectations to which the subject matter might give rise.
Dean Koontz, Beautiful Death

As palavras anteriores são do escritor Dean Koontz e fazem parte da introdução ao livro de fotografia cemiterial Beautiful Death do fotografo David Robinson.

Beautiful Death é uma belíssima compilação de fotografias tiradas em vários cemitérios da Europa, incluindo Portugal.

Segundo o autor, o livro nasceu na primeira visita que este fez ao Cemitério de Père Lachaise.
A beleza e impacto visual do local deixaram o autor completamente apaixonado e, tendo posteriormente vivido alguns anos em Paris, Père Lachaise passou a ser um dos seus locais preferidos.

Se procurarmos um tema por detrás deste livro-álbum - para além do cemitério, enquanto local de fundo - podemos dizer que este será, talvez, a diversidade.
Contendo imagens de cemitérios em França, Inglaterra, República Checa, Espanha, Portugal e Itália, o autor consegue apresentar uma selecção ampla, explorando as diferentes formas de celebrar a Morte e os mortos.

De Portugal, aparecem apenas cinco imagens, de cemitérios no Redondo e Vila Viçosa. As imagens exploram os pequenos altares de memórias, construidos pelos vivos, contendo fotografias, flores e pequenas recordações, resguardados por detrás de um vidro que os protege da passagem do tempo.

Em Itália, exploram-se as estátuas de bronze negro e verde e os belíssimos retratos pintados no esmalte que representam os falecidos.

A grande maioria das fotografias dizem respeito a França, em especial aos cemitérios de Paris e são realmente bonitas.

Publicado em 1996, Beautiful Death é um trabalho imperdível de David Robinson.


27.3.11

Cemitério de South Park Street

Durante a primeira metade do século XIX, os cemitérios românticos (vitorianos) espalharam-se por toda a Europa, desenhados por arquitectos conceituados que procuravam recriar os mitológicos espaços de Arcádia e Campos Elísios, concebendo belíssimos cemitérios-jardins.
Rapidamente, o cemitério parisiense de Père Lachaise (1803) foi tornado como modelo, sendo a sua planta distribuída, estudada e utilizada como base de trabalho numa série de cemitérios pela Europa fora; como foi o caso do nosso cemitério dos Prazeres (1833), por exemplo.

A verdade é que o "primeiro" cemitério vitoriano não apareceu na Europa, mas na Ásia: mais precisamente, na Índia.

Em 1690, a Companhia das Índias Orientais fundou a cidade de Calcutá. Nos anos que se seguiram, a afluência de europeus a esta zona da Índia foi aumentando, de acordo com os volumes de negócios. Alguns regressaram aos seus países de origem, mas outros foram ficando por lá.
Em 1767 foi fundado um cemitério para a inumação dos europeus que habitavam em Calcutá: o cemitério de South Park Street.
Fundado por motivos funcionais e de higiene, antecede toda a reforma cemiterial europeia.

Inspirados em monumentos funerários indianos, construções persas, egípcias e muçulmanas os monumentos que enchem este cemitérios não foram desenhados por arquitectos, mas construidos pelos próprios coveiros, segundo indicações dos proprietários.
Sãos construções de tijolo, rebocadas com estuque, pintadas e decoradas com colunas partidas, obeliscos, pirâmides.

Em 1830 o cemitério estava sobre-lotado e deixou de ser utilizado.

O material usado nas construções dos monumentos torna a conservação destes numa tarefa complicada, mais ainda se tivermos em consideração o clima húmido e quente dessa zona da Índia.

Sobre ele, escreveu Rudyard Kipling:

Lower Park Street cuts a great graveyard in two. (...)

The eye is ready to swear that it is as old as Herculaneum and Pompeii. The tombs are small houses. It is as though we walked down the streets of a town, so tall are they and so closely do they stand — a town shrivelled by fire, and scarred by frost and siege. Men must have been afraid of their friends rising up before the due time that they weighted them with such cruel mounds of masonry. Strong man, weak woman, or somebody’s ‘infant son aged fifteen months,’ for each the squat obelisk, the defaced classic temple, the cellaret of chunam, or the candlestick of brickwork — the heavy slab, the rust-eaten railings, whopper jawed cherubs, and the apoplectic angels.



26.2.11

Quatro Lendas Urbanas do Século XVIII


To be buried while alive is, beyond question, the most terrific of these extremes which has ever fallen to the lot of mere mortality. That it has frequently, very frequently, so fallen will scarcely be denied by those who think. The boundaries which divide Life from Death are at best shadowy and vague. Who shall say where the one ends, and where the other begins? We know that there are diseases in which occur total cessations of all the apparent functions of vitality, and yet in which these cessations are merely suspensions, properly so called. They are only temporary pauses in the incomprehensible mechanism. A certain period elapses, and some unseen mysterious principle again sets in motion the magic pinions and the wizard wheels. The silver cord was not for ever loosed, nor the golden bowl irreparably broken. But where, meantime, was the soul?
Edgar Allan Poe, The Premature Burial

Apesar de Edgar Allan Poe ter sido um génio criativo com uma imaginação delirante não foi ele quem inventou o pavor humano de se ser enterrado vivo.
Escreveu sobre ele, é certo, e fê-lo repetidas vezes - sempre causando um arrepio na espinha dos leitores - mas antes já havia quem redigisse testamentos capazes de garantir que nenhum herdeiro apressado aproveitava um episódio de catalepsia ou coma para tomar posse da herança, enterrando vivos pais, tios e outros parentes.
Na Europa do século XVIII eram numerosas as histórias que sobre enterramentos prematuros: umas com finais felizes e outras nem por isso.
Estas histórias podem ser divididas em quatro grandes grupos, existindo algumas variações da matriz, em certos detalhes, mas não fugindo da linha principal:
  • A Dama do Anel;
  • Os Jovens Amantes;
  • O Monge Lascivo;
  • O Anatomista Descuidado;
Em quase todas é possível encontrar relatos onde são mencionadas pessoas reais, mas em que, de país para país, se mudam os protagonistas.


A Dama do Anel

Talvez a mais famosa e mais variada das quatro, esta lenda urbana consegue ser rastreada até à Alemanha, apesar de aparecerem versões em que ela se passa em Inglaterra, Irlanda, Suécia, etc.

Uma senhora rica, tendo falecido de forma repentina, é levada para a cripta da família, onde é depositada estando trajada com o seu mais belo vestido, embelezada pelas suas criadas, que lhe arranjaram os cabelos e lhe colocaram as jóias favoritas; entre elas, um sumptuoso e ostensivo anel.
As portas fecham-se, a noite cai e um sacristão ganancioso entra de mansinho para roubar as jóias do cadáver. Incapaz de retirar o anel do dedo inchado da senhora, o sacristão puxa de uma faca e tenta cortar o dedo para poder levar o anel.
A dor causada pelo rude golpe é tal que a mulher, não estando efectivamente morta, desperta do torpor profundo em que caíra e, dando um grito, senta-se no caixão.
Com o susto, acreditando que a ressurreição do cadáver é obra divina, o pecador sacristão cai morto no chão.
A mulher, assustada, envolta na sua mortalha faz o caminho de regresso a casa, sem perceber o que lhe aconteceu. Bate à porta e vê-se confrontada pelo marido e restante família que, julgando-a morta, pensa tratar-se de um fantasma, de um truque do demónio e recusa-se a franquear-lhe a porta e ceder-lhe entrada.


Os Jovens Amantes

Esta também é uma história que aparece relatada em diversas fontes, sempre apresentando o caso como real, enunciando até as famílias a que pertenciam os jovens amantes.

Impedida de casar por amor, obrigada pelos pais a casar com um nobre rico, mas velho, uma jovem donzela acaba por morrer de desgosto, sendo inumada na capela da família.
Durante a noite, o amante abandonado entra na capela para um último adeus e acaba por encontrar a sua amada ainda viva, acabada de acordar dentro do caixão.
Receosos de serem descobertos e perseguidos pelo noivo indesejado, os jovens amantes partem para outra cidade onde se apresentam com outro nome e podem assim viver em paz.
Alguns dias depois, ao visitar a capela, os pais e o noivo da jovem encontram o caixão aberto e vazio.


O Monge Lascivo

Uma das histórias mais elaboradas diz respeito a um monge necrófilo.

A caminho do convento, um jovem monge toma abrigo numa taberna e é confrontado com o luto profundo do estalajadeiro, que vela a jovem filha morta numa dos aposentos do estabelecimento.
Choroso, o taberneiro pede ao monge que reze pela alma da filha, deixando-o sozinho com o cadáver.
O monge, encantado com a beleza da rapariga, acaba por violar o cadáver, partindo apressadamente na manhã seguinte.
Antes de enterrarem a jovem, o pai percebe que esta ainda respira e pouco depois ela é reanimada. Mais tarde, sem ter conhecimento do que se passou com o monge, a jovem dá conta que espera uma criança.
Meses depois, o monge regressa à estalagem, onde encontra a rapariga viva e com um filho nos braços. Confessando ao estalajadeiro a sua indiscrição durante o velório, o monge acaba por abandonar o hábito e casar com a rapariga.


O Anatomista Descuidado

Apesar de inicialmente esta lenda estar associada a um anatomista em especial, o reputado Andreas Vesalius, rapidamente foi difundida, variando o anatomista e a nacionalidade da paciente.

Originalmente, conta-se que Vesalius foi consultado por uma paciente espanhola que lhe disse estar a sentir-se mal, apresentado um estranho quadro de sintomas. Antes que o médico fosse capaz de identificar a maleita e tentar curar a paciente, esta morreu. Intrigado, o anatomista serviu-se da sua reputação para convencer a família a permitir-lhe efectuar uma autópsia.
Rodeando a mesa de dissecação, toda a família foi surpreendida pelo coração batente do cadáver, percebendo assim que esta estava a ser autopsiada viva, e assistindo ainda, impotentes, aos últimos batimentos cardíacos e a grito lancinante que cortou o ar, antes da doente espanhola falecer definitivamente.

Este mito urbano assombrou os anatomistas do século XVIII e XIX que, apesar de preferirem sempre um corpo fresco, não pretendiam dissecar um tão fresco ao ponto de ainda estar vivo.

23.2.11

Funeral Fantasma de Lyme Park

There, in the middle of the broad bright high-road — there, as if it had that moment sprung out of the earth or dropped from the heaven — stood the figure of a solitary Woman, dressed from head to foot in white garments, her face bent in grave inquiry on mine, her hand pointing to the dark cloud over London, as I faced her. (...)
It was then nearly one o'clock. All I could discern distinctly by the moonlight was a colourless, youthful face, meagre and sharp to look at about the cheeks and chin; large, grave, wistfully attentive eyes; nervous, uncertain lips; and light hair of a pale, brownish-yellow hue. There was nothing wild, nothing immodest in her manner: it was quiet and self-controlled, a little melancholy and a little touched by suspicion; not exactly the manner of a lady, and, at the same time, not the manner of a woman in the humblest rank of life.
Wilkie Collins, The Woman in White

É quase impossível falar de cemitérios, sepulturas e funerais sem nos cruzarmos com um ou outro fantasma.

Existe até uma categoria de histórias do "outro mundo" que acontecem em cemitérios, estão associadas a enterramentos ilegais e ocultação de cadáveres ou não são mais do que cortejos fúnebres espectrais.
E é esta categoria de histórias de fantasmas que tem algum interesse para os tafofilos, até porque muitos dos relatos fantasmagóricos estão relacionados com pessoas reais e as suas escolhas e limitações em vida e, desse modo, acabam por ser extremamente interessantes.

No condado de Cheshire, em Inglaterra, existe uma enorme e magnífica propriedade conhecida como Lyme Park.
Utilizada diversas vezes em filmes e séries de televisão (por exemplo, na produção da BBC de 1995 de Pride and Prejudice, Lyme Park é Pemberley, a residência de Mr. Darcy) a enorme mansão, cercada por belíssimos jardins e um parque para veados, foi construida no final do século XVI, tendo sofrido modificações substanciais durante o século XVIII.

A propriedade foi doada a Sir Thomas Danyers, em 1346, tendo ficado na posse de sua família até 1946, altura em que passou a pertencer ao National Trust, que, recentemente, a classificou em sexto lugar, na lista das propriedades históricas mais assombradas.

Durante parte do século XV, a propriedade de Lyme Park esteve na posse de Sir Piers Legh II.
Em 1415, na batalha de Agincourt, Sir Piers foi gravemente ferido, mas poupado da morte pelo seu extraordinário mastim, que se colocou sobre o corpo do dono e o protegeu durante horas, até este ser encontrado pelos companheiros de batalha. Em 1422, Sir Piers voltou a ser ferido, desta vez na batalha de Meux, e acabou por sucumbir na sequência desses ferimentos, em Paris.

O corpo foi enviado para Inglaterra, para ser entregue à esposa na residência de Lyme Park. Mas mais que a sua esposa, era Blanche, uma jovem e bonita camponesa, quem aguardava ansiosamente pelo regresso do cavaleiro. A morte do amante destroçou o coração da pobre rapariga, que foi impedida de comparecer aos rituais fúnebres levados a cabo pela família de Sir Piers.

Durante uma noite escura um enorme cortejo fúnebre medieval, negro e silencioso, cruzou a entrada principal de Lyme Park, envolto no rugido de uma tempestade. Atrás, afastada o suficiente para não ser notada ou repreendida, uma figura esguia, ensopada pela chuva que a vergastava, seguia o desfile em silêncio envergando um longo vestido branco: era Blanche.

Pouco tempo depois Blanche morreu de desgosto, tendo o seu corpo sido encontrado num prado, num local que é agora conhecido como Lady´s Grave.

Em 1442, depois de completa a construção da capela da família Legh na igreja de St Michael, o corpo de Sir Piers foi para lá transladado.

Mas o fantasma de Blanche não teve descanso.

Em noites de tempestade vários visitantes têm, ao longo dos anos, observado um cortejo fúnebre entrando o portão de Lyme Park e dirigindo-se à mansão; a fechar o cortejo, está sempre a figura etérea e silenciosamente chorosa de uma mulher vestida de branco.
Outros têm encontrado a mulher vestida de branco sozinha, vagueando pelo parque, ou sob uma das enormes árvores na frente da casa.
Diz-se que o desgosto por não ter conseguido despedir-se do amante, Sir Piers Legh II, é responsável pela assombração.

Quem sabe se não foi a lenda do fantasma de Lyme Park que inspirou Wilkie Collins para descrever a primeira aparição da inesquecível Anne Catherick n' A Mulher de Branco?

18.2.11

Monumentos Memoráveis: La Giovane Morta

No ensaio The Philosophy of Composition, Edgar Allan Poe partilha connosco uma reflexão acerca dos temas que considera mais melancólicos e mais poéticos.
Diz-nos o autor d' O Corvo:
'I asked myself - "Of all melancholy topics, what, according to the universal understanding of mankind, is the most melancholy?" Death - was the obvious reply. "And when", I said, "is this most melancholy of topics most poetical?" ... "When it most closely allies itself to Beauty": the death, then, of a beautiful woman is, unquestionably, the most poetical topic in the world.'
Esta sublime temática poética de que nos fala Poe pode ser encontrada nos seus próprios poemas - recordo o clássico romântico Annabel Lee, genialmente traduzido para português por Fernando Pessoa - mas também noutras artes, como a pintura - por exemplo, já mencionado a propósito de Lizzie Siddal, Ophelia de Millais - ou a escultura. E é esta última forma de arte que reina na área da arte funerária.

Quando Isabella Casati (Α:1865 - Ω:1889), a belíssima esposa do Barão Gianluigi Casati, morreu com apenas vinte e quatro anos, a sociedade italiana ficou chocada.

O Barão Casati, certamente desgostoso, chamou o talentoso escultor italiano Enrico Butti, e encomendou-lhe uma obra em memória da falecida Isabella, com o objectivo de colocá-la no túmulo da família Casati, no Cemitério Monumentale de Milão.

Butti, aparentemente inspirado por um trabalho de Bartolini na igreja de Santa Croce, em Florença, optou por criar um bronze onde representa Isabela dormindo, reclinada em almofadas, com os braços pousados a acompanharem o corpo e, sobre o peito desnudado, um crucifixo.

Por detrás da figura, e suportado por mármore rosa, um baixo relevo de bronze reforça a ideia do consolatório sono de morte, onde anjos rodeados de estrelas aguardam, nos degraus da escada que conduz ao Paraíso, a chegada das almas.

Este peça é considerada uma das primeiras a transmitir a mensagem da morte doce, usando para isso a imagem de uma bela mulher que, enquanto dorme, morre, fazendo assim uma doce e serena travessia do mundo dos sonhos para a outra vida, onde anjos a esperam.

La Giovane Morta (The Dream of Death) traz-nos também uma componente levemente erótica, frequentemente presente na arte funerária onde são representadas adolescentes ou mulheres mais jovens, e que pode ser percebida pela sinuosa linha criada pelas mãos e ombros, pelos lábios cheios, pela exposição do peito e os longos cabelos, sensualmente dispostos sobre a almofada numa evocação à morte de Ofélia.

Em 1891 o monumento fez parte da Brera Triennale, em Milão, tendo sido um forte concorrente ao prestigioso prémio Principe Umberto.
A aclamação do público foi imediata e um respeitado e influente critico de arte considerou-a um magistral exemplo de uma nova Arte Ideísta.

Depois do trabalho de Enrico Butti, as imagens de jovens acamadas (dormindo) foi utilizada inúmeras vezes, em memoriais comemorativos de mulheres falecidas na força da idade.

A 2 de Novembro de 1891, o dia que a Igreja Católica consagra aos Fiéis Defuntos, o monumento foi inaugurado, tendo sido publicada uma reportagem desse evento na conceituada revista Illustrazione Italiana.

Ainda hoje, esta é uma das obras mais visitadas e fotografadas no cemitério Monumentale de Milão, fazendo obrigatoriamente parte das visitas guiadas que todos os dias enchem o cemitério de turistas.

Cemitério Monumentale de Milão, Itália @Gisela Monteiro.2010

14.2.11

Falecidos Famosos: Lizzie Siddal

Numa escura noite de Outono, no ano de 1869, uma macabra procissão trilhou os caminhos do Cemitério de Highgate. Com a ajuda de candeeiros, os coveiros liam os nomes nas pedras tumulares, procurando por um túmulo especial. Uma vez encontrado, juntaram uma pilha de lenha e acederam uma fogueira de labaredas trémulas; em seguida, agarraram nas pás e enxadas que traziam com eles e começaram o trabalho.
Durante horas nada mais se ouviu a não ser o crepitar das chamas, fustigadas pelo vento, e o barulho monótono das pazadas a retirar terra. Por fim, o embate de metal em madeira: o ressoar oco de um caixão. Mais terra e vozes murmurantes - envergonhadas. Cordas estalaram e os homens içaram o esquife para fora da cova.
Alguém se aproximou dele, sem temor, e fez saltar a tampa com esforço. Os restantes recuaram, assustados.
Dizem que o rosto conservara a beleza: incorrupto.
Dizem que os seus luxuriantes cabelos ruivos enchiam o caixão com lampejos de fogo, tendo continuado a crescer depois da morte.
Dizem que parecia adormecida, linda, perfeita, como nas telas onde foi pintada até à exaustão.
Uma mão desceu entre os cabelos e o rosto do cadáver e regressou com um manuscrito encadernado a couro. O mesmo homem fez sinal aos coveiros: mandou fechar o caixão e devolvê-lo à terra, voltado a enterrar a imortal Elizabeth Siddal.

Elizabeth Siddal (Α:1829 - Ω:1862), a ruiva que inspirou a Irmandade Pré-Rafaelita, viveu uma das mais belas e trágicas histórias de amor do século XIX.

Descoberta aos vinte anos enquanto trabalhava numa loja de chapéus, os seus magníficos cabelos ruivos, a magreza e o rosto fora do comum rapidamente a tornaram na modelo favorita do grupo de jovens pintores que pretendia revolucionar o mundo artístico vitoriano. O seu primeiro grande sucesso enquanto modelo viria das mãos do talentoso Millais.
No Inverno de 1852, este pintou-a morta, encarnando Ofélia, num vestido branco flutuante, rodeada de flores e afogada numa ribeira.
Na realidade, Lizzie quase morreu, de facto, durante a realização deste trabalho: Millais tinha uma enorme banheira no atelier, que enchia de água quente e onde fazia Lizzie deitar-se tardes inteiras, flutuando, numa simulação do riacho.
Para manter a água quente, Millais acendia um conjunto de lamparinas sob a banheira. Numa das últimas sessões, as lamparinas apagaram-se e Lizzie, não querendo interromper o pintor, deixou-se ficar na água, gelando.
Essa tarde resultou numa pneumonia que muito a debilitou e da qual nunca recuperou completamente.

Entretanto, Dante Gabriel Rossetti - um dos mais talentosos artistas do grupo - apaixonou-se perdidamente por Lizzie e não a deixava posar para mais ninguém.
Rossetti tornou-se o seu mentor, ensinando-a a desenhar e pintar. Os seus trabalhos chegaram a ser expostos com os dos restantes elementos da Irmandade Pré-Rafaelita. Durante anos, Lizzie e Rossetti viveram um para o outro, num amor que ficou registado nos inúmeros trabalhos do artista, onde cabelos ruivos enchem as telas de fogo.

Christina Rossetti, irmã do pintor, escreveu a propósito desses amores:
"He feeds upon her face by day and night,
And she with true kind eyes looks back on him,
Fair as the moon and joyful as the light:
Not wan with waiting, not with sorrow dim;
Not as she is, but was when hope shone bright;
Not as she is, but as she fills his dream."
Lizzie foi uma mulher de saúde frágil, incorrendo muito cedo no vício do láudano, que lhe alterava continuamente a disposição, e a relação com Rossetti, atribulada e cheia de traições e mágoas, deixava-a prostrada e triste, naquilo que os especialistas e estudiosos consideram ter sido um estado de depressão crónica. Lizzie viajou para fora de Londres várias vezes para tratar dos nervos, quase terminando o seu affair com Rossetti pelo menos numa das ocasiões, para desesperar de saudades, piorar seriamente o sempre precário estado de saúde e obrigar Rossetti a deixar trabalho, amores e amigos em Londres, rumando, semi-enlouquecido, para onde quer que Lizzie definhasse.

A proposta de casamento só aconteceu sobre um leito que todos esperavam ser de morte e foi carregada de arrependimento e culpa; mas ao casar, Rossetti prometeu ser fiel a Lizzie e todos os factos conhecidos fazem-no cumpridor dessa promessa.

Quando Lizzie se suicidou, Rossetti quase enlouqueceu e depositou um manuscrito de poemas dentro do caixão dela, sob os belos cabelos ruivos, prometendo-lhe amor eterno.

No lento processo de luto pintou um dos seus mais belos e louvados trabalhos "Beata Beatrix", representando Lizzie no momento final, de olhos fechados, recebendo uma papoila - alusão ao ópio - do bico de uma fénix - renascimento, ressurreição, imortalidade, vida após a morte...
Dizem que se fecharmos os olhos, conseguimos ouvir o último suspiro de Lizzie, vindo dos lábios pintados por Dante.

Sete anos depois, é um Rossetti enfraquecido e incapaz de pintar que se deixa convencer por um agente a pedir uma autorização para exumar o corpo de Lizzie e recuperar o manuscrito, mas é incapaz de estar presente durante a exumação.

O caderno recuperado tem um conjunto de poemas belíssimos, originalmente escritos para Lizzie, mas o seu novo livro - uma mistura de trabalhos inéditos com os recuperados em Highgate - não é bem recebido pela critica.

No final da vida, Rossetti pediu para não ser enterrado no talhão da família junto de Lizzie. Disse-se que foi por remorsos.


Família Rossetti no Cemitério de Highgate

3.2.11

Livros: Cemitérios de Lisboa: Entre o Real e o Imaginário

Corria o ano de 1993 quando a Câmara Municipal de Lisboa publicou um dos únicos – senão mesmo o único – livro em português sobre cemitérios portugueses; lisboetas, para ser mais exacta.

O autor é Francisco Moita Flores e o livro Cemitérios de Lisboa: Entre o Real e o Imaginário é uma edição de luxo, em formato grande, de capa dura, sobre-capa e fita de seda, que deveria fazer parte da biblioteca de qualquer tafofilo que se preze.

Diz-nos Moita Flores na sua introdução:

As páginas que se seguem não são a história dos cemitérios, como esta tradicionalmente é entendida - um discurso cronologicamente organizado sobre a memória, nem quer ser um mero roteiro turístico preocupado com a bela apresentação e de narrativa simplista. É, antes de mais, uma reflexão sobre nós, sobre a nossa cidade, sobre a Morte. Ou dito de outra forma,sobre o modo como os vivos pensam, sentem e representam a Morte. Tornámo-nos, assim, viajantes através da memória, espreitando às encruzilhadas de esperanças e angústias que são ponto de encontro de todos nós, no momento em que reassumimos a consciência da nossa própria finitude.
Apesar de não ser fácil encontrar o livro nas livrarias comuns, ainda pode ser adquirido em alfarrabistas ou, com muita sorte, na loja da Câmara Municipal de Lisboa na Avenida da República.

Quando comprei o meu, há uns anos, ainda lá ficaram dois.

Contém inúmeras fotografias, contextos históricos, alguma simbologia e descrição de rituais de morte e, uma das mais valias do livro, uma visita guiada ao Jazigo Palmela no Cemitério dos Prazeres, um dos maiores jazigos da Europa, que reúne o número recorde de cerca de 200 corpos e restos mortais de elementos da mesma família.





Jazigo Palmela, Cemitério dos Prazeres, Lisboa, Portugal @Gisela Monteiro.2010

2.2.11

Mort Safe

«Relva e ervas ruins cresciam em abundância por todo o cemitério, cobrindo completamente as velhas sepulturas. Não havia ali uma pedra tumular. Sobre cada sepultura havia uma tabuleta carcomida, com a parte de cima arredondada mais ou menos tombada e sem ter a que se apoiar. Noutro tempo, em cada uma delas, tinha sido pintado o nome da pessoa a quem era consagrada, mas, ainda mesmo que houvesse luz, ninguém conseguiria lê-las. (...)
Na escuridão distinguiam-se a custo uns vultos vagos, que se aproximavam balouçando uma lanterna acesa, cuja luz punha no chão inúmeras manchas. (...)
O doutor pôs a lanterna à cabeceira da sepultura e foi sentar-se encostado ao tronco de um dos ulmeiros (...)
Durante algum tempo não se ouviu nenhum ruído além do que faziam as enxadas a abrir a terra, e que era muito monótono. Finalmente, uma delas tocou no caixão, com um ruído oco de madeira; em pouco minutos os homens içaram-no para fora da cova. Tiraram o corpo e deixaram-no cair rudemente no chão. A Lua apareceu entre as nuvens e iluminou o rosto pálido. Estava pronta a padiola. Colocaram-lhe o corpo em cima, taparam-no com um cobertor e ataram-no com uma corda.»
Mark Twain, As Aventuras de Tom Sawyer

No excerto acima, Mark Twain descreve um acontecimento comum no final do século XVIII: o roubo de um corpo, em nome da ciência. Os avanços científicos na área da medicina tornavam a dissecação de corpos humanos numa necessidade imperativa, mas as regras religiosas dificultavam a disponibilização de cadáveres às universidades.
Nasceram, assim, os ladrões de corpos que a troco de dinheiro invadiam cemitérios à noite, desenterrando os mortos mais recentes para vendê-los a estudantes de medicina, que evitavam fazer perguntas.
O horror da morte de um familiar era seguido pela angústia da possibilidade do corpo não ter direito ao descanso eterno e acabar na marquesa de um anatomista.
Foram criados mecanismos de defesa para os mortos, que passaram pela construção de mausoléus, gaiolas de metal ou caixões explosivos. Em 1816 foi inventado um sistema, baseado num conjunto de grades de ferro e cadeados que, colocado rente ao chão, sobre as campas, impedia os ladrões de roubar os corpos.
Em alguns casos, as grelhas eram retiradas, e reutilizadas, logo que o corpo se encontrava suficientemente decomposto para já não ser cobiçado pelos estudantes; noutros casos, iam ficando - e ainda hoje podem ser encontrados em cemitérios antigos.
Esse sistema de grelhas ganhou o nome de mort safe.