Quando li o livro Cemitérios de Lisboa: Entre o Real e o Imaginário, de Francisco Moita Flores, um dos capítulos que mais me impressionou foi o dedicado à simbólica do Estado Novo presente nos cemitérios de Lisboa.

Os mausoléus tornaram-se em blocos de pedra lisa, sem altos ou baixos relevos; tectos direitos, ausência de anjos e santos - à excepção de uma ou outra estátua de Maria, de uma ou outra cruz - e portas de metal compactas.
Desaparecem os pequenos vitrais coloridos, desaparecem os epitáfios e inscrições nas paredes dos sepulcros.
Ainda assim, aquilo que é realmente revelador é o espaço dedicado ao jovens soldados que morreram durante a Guerra do Ultramar, por terras de África.
Portugal ia, obviamente, ganhar a Guerra e manter as províncias ultramarinas para sempre: esse era o espírito da época e a mensagem repetida pela forças políticas e pela muito activa e eficaz máquina de propaganda salazarista.
O controlo da informação era uma ferramenta essencial e, com a ajuda da censura, os números revelados sobre as baixas nacionais no Ultramar ficavam aquém dos reais.
Para isso, ajudou não existir um cemitério específico para os combatentes portugueses: faltou-nos um Arlington, por exemplo. Não porque não o pudessem ter criado, mas tal espaço evidenciaria a quantidade de vidas que se estavam a perder; e, já se sabe, quando as baixas de Guerra são grandes é porque não se está a ganhar.
Mas Portugal ganhava. Orgulhosamente só. Ou assim nos diziam...
Para manter essa ideia era necessário mascarar a realidade dos números, sempre crescente, dos mortos em combate.
Para isso recorreram a três abordagens diferentes.
Parte dos mortos ficaram em África.
Exemplo disso é esta Reportagem Especial da SIC, onde um grupo de jornalistas se deslocou até Mueda, em Moçambique, e visitou um cemitério esquecido, onde estão enterrados combatentes da Guerra do Ultramar que nunca regressaram a Portugal.

Uma das formas que o Estado Novo encontrou para não efectuar a trasladação dos corpos foi através da cobrança do serviço: quem quisesse fazer regressar o corpo do filho, do marido, do irmão, do pai, tinha de pagar um valor elevado; caso contrário, o corpo seria enterrado em cemitérios em África.
Muitos ficaram por lá.
Outra forma utilizada para mascarar, reduzindo, o número de mortos era dispersá-los: considerando que os corpos eram trazidos pelos familiares, estes eram levado para os cemitérios civis das diversas localidades, espalhados por todo o país, enterrados nos jazigos ou campas de família não sendo, normalmente, identificados como vítimas da Guerra.
Eram apenas mais uns familiares falecidos.
A terceira opção era esconder os que não podiam ser enviados para as aldeias ou deixados em África.

Prova disso é a forma como foi escolhido e construído o talhão dos combatentes no cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
O talhão seleccionado é um espaço estreito, bem mais baixo que restante cemitério e escondido por um muro alto, no topo do qual está edificado um conjunto coeso de mausoléus altos, que funcionam como uma parede, impedindo a visibilidade.
Existem apenas três espaços de acesso a este talhão e estão estrategicamente colocados de forma a não permitir que se perceba a quantidade de pedras tumulares.
Na zona do talhão em que este é mais estreito, as filas são de apenas duas campas e conforme o talhão se vai alargando passamos a três, quatro, cinco.
No livro de Moita Flores existem algumas imagens deste espaço, mas em 1993 a realidade retratada foi muito diferente da que presenciei: um ar de abandono e esquecimento marca todas as campas, onde a chuva e o vento apagaram os stencils que, pintados na pedra, serviam para identificar os mortos e que ainda estavam bem visíveis no início da década de noventa.
Desapareceram também as floreiras de mármore e as flores e tudo o que se vê é algum capim e as pedras escuras e despidas.

Quem diria, ao olhar para este espaço, que na Guerra do Ultramar morreram cerca de nove mil pessoas?