A 21 de Maio de 2023 assinala-se o centenário da morte do 9.º Conde de Sabugosa: António Maria Vasco de Melo Silva César e Meneses, escritor, historiador, diplomata e mordomo-mor da Casa Real portuguesa. Figura incontornável das letras portuguesas na passagem do século XIX para o XX, integrou o grupo Vencidos da Vida (tendo sido até o penúltimo elemento a falecer, poucas semanas antes do poeta Guerra Junqueiro), expirando aos 71 anos.
O funeral foi agendado para o dia seguinte no cemitério dos Prazeres, para o jazigo particular n.º1587 (construído em 1866) – o mesmo que albergou temporariamente em 1915 os restos mortais de Ramalho Ortigão, outro Vencido da Vida, enquanto a família deste mandava construir o jazigo que agora o acolhe no cemitério do Alto de São João.
Esperava-se uma enchente no cemitério dos Prazeres para o funeral do Conde de Sabugosa e o polícia a quem foi confiada a tarefa de manter a ordem durante a cerimónia diria depois ao jornal O Século que um pressentimento o levara a pedir reforços à esquadra da Estrela, que lhe enviara os polícias de piquete.
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Arquivo Fotográfico do jornal O Século Torre do Tombo |
Perto das 17:00 horas, já terminada a cerimónia e quando muitos dos acompanhantes se retiravam, aconteceu o impensável: o silêncio murmurante do cemitério foi rasgado por três tiros de pistola. Na altura, houve quem dissesse terem sido cinco, mas foram três – suficientes para matar um homem.
Por entre as sombras dos ciprestes, encoberto pelos jazigos e perscrutando a multidão, António Nunes Canha aguardara Adolfo do Couto Viana, o gerente da fábrica da Companhia União Fabril (CUF) nas Fontaínhas, que tinha ido ao funeral do Conde de Sabugosa em representação de Manuel José de Melo: director da CUF e sobrinho do falecido. Pouco tempo antes, Nunes Canha fora despedido por Adolfo Viana; no dia do funeral, vendo-o passar a caminho do cemitério, seguiu a carruagem e decidiu recorrer à violência. Por entre gritos e corridas, Adolfo Viana perdia a vida, sangrando no chão sagrado do cemitério.
Talvez em choque por ter tido sucesso no atentado, Nunes Canha deixou-se agarrar pelos polícias que escoltavam o cortejo fúnebre, sendo levado para o interior do edifício da administração do cemitério, junto do portão principal, enquanto a multidão regressava, irada, apercebendo-se do que se passara no cemitério. O corpo inerte de Adolfo Viana, que o Dr. Melo Breyner – também presente no funeral – declarou morto, indignava a multidão, que gritava pelo assassino, apelando à justiça popular.
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Arquivo Fotográfico do jornal O Século Torre do Tombo |
Nesse mesmo dia, na Câmara de Deputados, Paulo Cancela de Abreu, que estivera presente no funeral e por isso chegou a meio da sessão, declarou ter presenciado «o vil atentado contra o gerente da Companhia União Fabril, que o vitimou» . O seu depoimento causou sensação na câmara e o Crime dos Prazeres, como popularmente ficou conhecido, ficou ainda associado a outra situação de violência, quando à porta do Parlamento um soldado da Guarda Republicana atacou o deputado Carvalho da Silva.
O resultado destes acontecimentos inesperados foi o de as reportagens das exéquias do Conde de Sabugosa terem sido reduzidas para dar espaço ao relato do atentado, aos detalhes sobre a vítima, sobre a vida do assassino e os seus antecedentes criminais. E, claro, dois dias depois reportava-se um novo funeral: Adolfo Viana, abatido no funeral anterior, seguindo da igreja de São Domingos para o jazigo de família no cemitério do Alto de São João. O destaque dado pelos jornais foi para a multidão que se juntou em torno da igreja, nas ruas adjacentes e para a presença notória de muitos operários.
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Arquivo Fotográfico do jornal O Século Torre do Tombo |
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Arquivo Fotográfico do jornal O Século Torre do Tombo |
Sabemos que em 1925, dois anos depois do sucedido, o caso continuava por julgar no tribunal da Boa Hora por incapacidade de assegurar o número suficiente de jurados para formar um júri. Nunes Canha terá sido sentenciado ao degredo em África (de onde regressou, temporariamente, em 1942, por motivos de saúde), facto atestado por uma circular escrita por seus correligionários que procurava apoio financeiro que lhe permitisse continuar na metrópole, mas perdemos-lhe o rasto.
O caso do Crime dos Prazeres é único em Portugal, corporizando um assassinato premeditado, perpetrado no interior de um cemitério, após um funeral.
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