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9.12.16

Falecidos Famosos: Florbela Espanca

Ao entrar no cemitério de Vila Viçosa, guardado no interior do castelo, limitado pela muralha ameiada, o primeiro sepulcro que vemos é o da poetiza Florbela Espanca (Α:1894 - Ω:1930).

Nascida a 8 de Dezembro, viria a suicidar-se também a 8 de Dezembro, 36 anos depois.

Pelo caminho, uma vida cheia de tudo, mas principalmente cheia de dores que a marcaram profundamente: casamentos fracassados, crianças que nunca nasceram, a angustia da sociedade mesquinha e amores por cumprir e vários livros que ficam para sempre, como Charneca em Flor.


Amar!
Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!  
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente! 
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar! 
E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar... 
Florbela Espanca, in "Charneca em Flor" 


2.9.12

Convento de Santa Clara-a-Velha

Em Coimbra, nas margens do Mondego, fica o mosteiro de Santa Clara-a-Velha, fundado no século XIII e abandonado no século XVII, depois de anos de inundações. As águas desse rio invadiram definitivamente o espaço e, durante séculos, submergiram parcialmente o mosteiro até à sua recuperação no final do século XX.
As águas, lamas e lodos que tomaram conta do mosteiro serviram também de um estranho conservante.
Uma visita ao complexo, completamente recuperado e que integra um interessante museu, com objectos encontrados nas escavações e a contextualização desses objectos no dia-a-dia do mosteiro, mostra-nos o uso de coloridos azulejos, o recorte delicado de colunas e, especialmente, pedras decoradas que cobrem os locais de inumação das freiras que o habitavam. 
Mostra-nos ainda alguns dos costumes associados às inumações na idade média.

Sendo religiosas, as mulheres eram enterradas no interior do mosteiro ou em redor do claustro. 
Nas pedras tumulares, não tendo sido pisadas durante trezentos anos, as marcas são ainda visíveis e muito interessantes: cruzes, cordas com nós (imitando as que as freiras usavam à cintura), desenhos geométricos, nomes e datas, etc.
No exterior, no pequeno corredor entre o edifício principal e o claustro estão várias dessas pedras tumulares, muito bem preservadas.
Os locais de inumação variavam conforme a importância do morto, especialmente neste contexto de enterramentos apud ecclesiam.
Quanto mais próximo do altar, mais importante era considerada a pessoa. Por isso é que no interior do edifício principal, junto da porta que dá acesso ao claustro, é que está enterrada uma das mais importantes abadessas do mosteiro.
No decorrer dos trabalhos arqueológicos, foram encontradas cerca de 70 religiosas enterradas na zona do cadeiral e nas naves laterais; estes enterramentos terão ocorrido depois das primeiras cheias, quando o coro passou para a parte superior do edifício.
 Para além destes casos pode ainda encontrar-se um interessante sepulcro num nicho, deixado no piso inferior, que terá estado submerso durante todos estes séculos.

No entanto, as mais ilustres ossadas a repousar no convento de Santa Clara-a-Velha são, sem dúvida, as da Rainha Santa Isabel, esposa do rei D. Dinis, apesar de terem sido levadas para o convento de Santa Clara-a-Nova quando as clarissas abandonaram o local. É ainda possível ver o arco triunfal, em pedra de Ançã ricamente decorada, onde estaria o sepulcro da rainha.
Tendo morrido em Estremoz e sendo seu desejo ser sepultada no mosteiro, em Coimbra, antevia-se o pior durante a demorada viagem naquele Verão especialmente quente.
Quando o ataúde onde viajavam os restos mortais da rainha começou a apresentar rachas e fendas, das quais se vertia um liquido pastoso, foi com surpresa que, ao invés de sentirem o cheiro putrefacto da decomposição de um cadáver, os súbditos que acompanhavam a procissão fúnebre relataram sentir um suave cheiro a flores e plantas.
Durante anos, o sepulcro da rainha ficou no interior da igreja, mas, com as cheias que já referimos, ele também foi transportado para o andar superior. 
Acorriam multidões ao mosteiro para rezar à rainha, que, ainda em vida, foi considerada santa pelo povo. Apesar de ter morrido em 1336, a beatificação e canonização ocorreram em 1515 e 1625, respectivamente.

Com o abandono do mosteiro, as águas do Mondego invadiram o local, que esteve esquecido e semi-submerso até 1995, ano em que começaram os trabalhos de recuperação.

Como nota final, gostaria de deixar uma palavra para todos aqueles que trabalham ou trabalharam neste projecto para resgatar o convento de Santa Clara-a-Velha das águas do Mondego. 
É uma obra fantástica, tendo resultado num complexo muito rico e interessante, cheio de informação. Todos eles estão de parabéns.

28.7.12

D. Inês de Castro por Byatt


"...Pedro of Portugal's rapt and bizarre declaration of love, in 1356, for the embalmed corpse of his murdered wife, Inez de Castro, who swayed beside him on his travels, leather-brown and skeletal, crowned with lace and gold circlet, hung about with chains of diamonds and pearls, her bone-fingers fantastically ringed." 

do romance Possession de A. S. Byatt.

9.6.12

O Coração do Poeta

 A 1 de Fevereiro de 1851 morria Mary Shelley (Α:1797 - Ω:1851), a mãe de um dos mais célebres monstros da literatura: a criatura de Frankenstein, construída de pedaços de cadáveres. Entre os seus haveres, foi encontrado um belíssimo volume, encadernado em couro macio, contendo o poema Adonais, um dos mais brilhantes trabalhos do seu marido, o poeta romântico Percy Shelley (Α:1792 - Ω:1822). 
No interior do livro, enrolados num pedaço de seda, estavam os frágeis fragmentos do que restava coração do poeta, confirmando como verdade aquilo que tinha sido lenda...

As escolhas pouco ortodoxas dos Shelleys - ou melhor, de Percy Shelley e Mary Wollstonecraft Godwin - não os deixaram viver sossegados em Inglaterra, à semelhança do que aconteceu com o seu amigo George Gordon, Lord Byron (Α:1788 - Ω:1824). 
As posições políticas de Shelley, a sua apologia do ateísmo e o facto de viver maritalmente com Mary Godwin quando era casado com outra mulher, acabaram por os votar ao ostracismo, numa sociedade vitoriana completamente intolerante.
Casados desde 1816, depois da primeira mulher de Shelley ter-se suicidado por afogamento, os Shelley foram viver para Itália, dois anos depois, numa villa perto de Lerici.
A 1 de Julho de 1822, Shelley decidiu sair com o seu barco (o Ariel), planeando ir até Pisa, onde se encontraria com Lord Byron, com quem preparava uma nova revista. 
Depois de uma semana a viajar, Shelley e os companheiros decidiram ignorar os sinais de tempestade que escureciam o horizonte e fazer-se novamente ao mar, procurando regressar a Lerici quanto antes. 
Seria essa a última vez que seria vistos com vida.

Passaram-se dias e não havia qualquer notícia dos tripulantes do Ariel: este barco não foi encontrado e nenhum corpo dera ainda à costa. 
Mary e os filhos foram levados para Pisa pelo Capitão Trelawny - um amigo muito recente de Shelley, mas que se mostrou extremamente dedicado. Trelawny partiu para percorrer a costa italiana em busca dos cadáveres. 
Dez dias depois da tempestade, foram encontrados três corpos em diferentes locais e Trelawny apressou-se para tentar reconhecer os amigos.


Apesar de estarem já em avançado estado de decomposição, foi possível reconhecê-los pelas roupas e pertences.
Numa Itália que ainda não era unificada, estavam em vigor rigorosas regras de quarentena que impediam que corpos que fossem encontrados nas praias fossem levados para outros locais. Todos os corpos eram enterrados na areia, no local onde eram encontrados, cobertos por cal para acelerar o processo de decomposição.
Shelley e os companheiros não foram excepção. 
Cobertos de cal e enterrados nas praias, poderiam ter ficado perdidos para sempre se, mais uma vez, não fosse a dedicação de Trelawny.

Depois de negociar com as autoridades locais, o capitão conseguiu autorização para cremar os cadáveres e levar consigo as cinzas. Mandando construir um crematório portátil, em ferro, Trelawny começou por experimentar o processo com o cadáver de Edward Williams (um dos companheiros de viagem de Shelley). O processo demorou cerca de cinco horas e, no final, Lord Byron - que se havia juntado a Trelawny - pediu que, caso o destino dele fosse semelhante, o enterrassem onde ele caísse e o deixassem sossegado.

A 16 de Agosto de 1822, mais de um mês depois da fatídica tempestade que lhe roubou a vida, os restos mortais de Percy Shelley foram finalmente retirados das areias da praia e colocados na pira do crematório portátil. 
Labaredas intensas começaram a consumiram o cadáver do poeta, enquanto os seus amigos alimentavam as chamas com oferendas de vinho, sal e azeite.

De repente, segundo as memórias de Trelawny, o capitão viu o corpo do poeta estalar e romper, deixando a nu o seu coração, ainda intocado pelas chamas. 
Agindo somente por instinto, Trelawny estendeu a mão e, queimando-se, retirou o orgão ensanguentado do crematório, escondendo-o entre as suas vestes. Sem ser descoberto, viu o resto do corpo consumir-se até desaparecer, tornando-se cinzas.
Estas foram conservadas numa urna de nogueira e levadas para o cemitério Protestante de Roma, onde Mary pretendia que Shelley fosse enterrado junto do filho, mas a sobre-lotação do talhão levou as cinzas do poeta para outra campa, comprada por Trelawny e adornada com frases de Shakespeare.
Ao lado, uma misteriosa campa vazia. 

Quanto ao coração do poeta, Trelawny pretendia ficar com ele, mas acabou por dá-lo a Mary Shelley, que o conservou até morrer. 

Em 1880, a campa ao lado de Shelley foi finalmente ocupada: uma mulher inglesa transportou até Roma as cinzas de Trelawny, que quis ficar eternamente junto do poeta.

Em 1889, os fragmentos do coração de Shelley, transformados em pó pelos anos, foram colocados no mausoléu da família, com o corpo do filho que lhe sobreviveu.

30.1.12

Falecidos Famosos: Evita Perón

Quando, com apenas trinta e três anos, Eva Perón (Α:1919 - Ω:1952) sucumbiu ao cancro, Juan Perón temeu o efeito que o desaparecimento dela teria junto do povo argentino e, tendo a noção do decisivo papel da sua esposa para o manter na presidência, decidiu fazer o possível por conservá-la.

Eva Perón tivera um papel essencial durante todo o processo de eleição do marido, em 1946, e o seu apoio às classes mais pobres - os chamados descamisados - garantiu-lhe um papel quase divino junto das massas que, carinhosamente, a apelidaram de Evita.
A Primeira Dama da Argentina era idolatrada pelo povo e a sua morte foi um choque e enfraqueceu o poder do marido. Sem Evita, Péron era apenas mais um presidente.

Logo que Evita morreu, Perón mandou chamar o médico Pedro Ara, cuja apetência para embalsamar e preservar cadáveres era célebre no país, e pediu-lhe que garantisse que o corpo de Evita nunca fosse vitima de decomposição.
Pedro Ara - que normalmente viajava na companhia de uma cabeça embalsamada como prova das suas capacidades de taxidermista - usava uma curiosa técnica com excelentes resultados: substituía o sangue dos cadáveres por glicerina, o que permitia preservar todos os órgãos, incluindo o cérebro e, posteriormente, mergulhava o corpo em várias soluções de nitrato de potássio e plástico transparente.
Ara decidiu preparar e tratar o corpo em duas fases: a primeira, rápida, permitiria evitar os sinais mais imediatos da decomposição e manter o corpo em exposição durante alguns dias, de forma a garantir que o povo teria oportunidade de despedir-se de Evita; a segunda, mais demorada e definitiva, permitiria manter o aspecto de Evita, de acordo com o que esta tinha em vida e não tinha prazo de validade.

Era precisamente isso que Perón desejava, uma vez que pretendia manter Evita em exposição num monumento criado para o efeito; a adoração pela sua mulher considerada a líder espiritual da nação e o seu papel de viúvo extremoso permitir-lhe-ia manter parte da aura que Evita lhe emprestava, mesmo estando morta.
O monumento seria em Buenos Aires, maior que a Estátua da Liberdade e no seu interior o corpo perfeitamente conservado de Evita estaria em exposição todos os dias do ano.

Terminada a primeira fase do processo de embalsamamento, Evita foi colocada em câmara ardente por quinze dias. Pensa-se que passaram junto do caixão coberto por vidro cerca de dois milhões de pessoas.
Ara regressou ao trabalho e, cerca de um ano após a sua morte, o cadáver perfeitamente embalsamado de Evita foi colocado em exposição ao público no seu antigo gabinete de trabalho, aguardando a construção do monumento onde seria guardado.
O processo custou a Péron perto de 100 mil dólares

Em 1955, quando o monumento era ainda apenas um enorme buraco no meio de um parque, Péron foi afastado do poder por um golpe militar e fugiu da Argentina, abandonando o cadáver de Evita.
Os militares, que pretendiam destruir todas as recordações do casal Perón e das suas políticas, foram confrontados com a posse do corpo embalsado de Evita.
Inicialmente pensaram que se tratava de uma estátua de cera e planearam queimar o objecto, no entanto, numa tentativa de validação dessa teoria, e após várias sessões de radiografias consideradas inconclusivas, a Junta Militar Argentina acabou por cortar um dos dedos à figura e constataram que se tratava, de facto, do cadáver preservado da Líder Espiritual da Nação.

Por respeito às leis católicas ou, mais provavelmente, por superstição, decidiram esconder o cadáver em vez de o destruir: colocaram Evita num caixote de madeira nas traseiras de um camião e partiram para o interior da Argentina, tentando encontrar um local onde deixar esquecido o corpo. Mas estranhamente, os descamisados de Evita pareciam saber sempre onde a encontrar e, logo que era escolhido um espaço, começavam a aparecer velas e flores junto das entradas, colocadas pelos seguidores da esposa do ex-líder.
Durante dois anos, o corpo de Evita viajou semi-incógnito pela Argentina, diz-se que sendo sempre presenteado com flores, velas e outros objectos de adoração e reverência.

Várias histórias são contadas relativamente a este período de dois anos; num dos casos, Evita estaria escondida em casa de um major do exército que, preocupado com possíveis tentativas de roubo, acabou por disparar uma arma sobre o que pensou ser um ladrão apoiante de Perón, acabando por matar a própria esposa.

Numa altura em que era proibido ao povo argentino ter até fotografias do casal Perón em casa, a situação acabou por ser resolvida de outra forma. Fechou-se Evita num caixão e arranjou-se a documentação necessária para conseguir a inumação de "María Maggi", uma imigrante italiana a residir na Argentina, numa cripta do cemitério Monumentale de Milão.
E foi aí que Evita ficou, incógnita, até 1971.

Desde 1970 que Juan Perón e a sua terceira esposa, Isabel, se encontravam a residir em Madrid.
A instabilidade política e o descontentamento na Argentina acabaram por levar um grupo de guerrilheiros a raptar e executar Pedro Aramburu, presidente em funções, por crimes contra o povo. Quanto à possibilidade de devolverem o corpo de Aramburu à sua família, os guerrilheiros decidiram pedir como moeda de resgate a devolução do corpo de Evita ao povo argentino.

Face a esta situação, o advogado de Aramburu abriu a documentação que o seu cliente lhe deixara e entre os papeis encontrou um conjunto de pistas que lhes permitiu descobrir que Evita estaria enterrada em Milão.

Rápida e secretamente, numa colaboração entre as autoridades argentinas, italianas, francesas e espanholas, o cadáver foi exumado e transportado numa carreta funerária até Madrid, onde foi entregue a Juan Perón. Aguardando o cadáver estava o também exilado Pedro Ara que, com muita satisfação, constatou que o corpo estava magnificamente preservado. Apenas algumas rachas no plástico exterior e o nariz amassado eram prova dos dezasseis anos em que o corpo esteve desaparecido. Com excepção do dedo desaparecido e nunca recuperado, Ara rapidamente devolveu Evita à sua beleza inicial.

Evita permaneceu em Madrid até à morte de Perón em 1974. Este havia regressado à Argentina no ano anterior, deixando Evita na cidade espanhola, mas até aí, mantinha o cadáver da ex-mulher na sala de jantar, em exposição. São várias as testemunhas que participaram em jantares nessa sala, na presença de Evita.
Mais uma vez, os guerrilheiros argentinos decidiram raptar o cadáver do anterior presidente Aramburu e, mais uma vez, pediram o regresso de Evita.

Evita regressou ao solo argentino em Novembro de 1974.

Aguardando a construção de um novo monumento, o corpo de Evita e Perón ficaram em exposição até um novo golpe militar derrubar o inexperiente governo de Isabel (esposa de Perón).
Desta vez, Evita foi entregue à família e, com o apoio do governo, fechado numa cripta subterrânea sob o mausoléu dos Duarte no elegante cemitério de La Recoleta.

Perón, entretanto também embalsamado, foi depositado num cemitério nos arredores de Buenos Aires, no túmulo do seu avô. Apertadas medidas de segurança - que incluíram guardas, vidro à prova de bala e múltiplas fechaduras - não conseguiram impedir, em 1987, que a câmara mortuária fosse invadida e a espada cerimonial com que tinha sido enterrado fosse furtada; mais grave que isso, os ladrões deceparam e roubaram as mãos do antigo presidente.
Alguns dias depois enviavam a nota de resgate: oito milhões de dólares por, diziam, "serviços prestados em 1972".
Apesar da situação ter causado indignação generalizada, ninguém tentou angariar os fundos necessários para resgatar as mãos de Perón pelo que, se assume, os ladrões levaram a cabo a promessa de "pulverizar" as mãos de Perón.

Evita continua no magnifico cemitério de La Recoleta, onde é visitada diariamente por centenas de pessoas que lhe deixam flores e se fazem fotografar junto do mausoléu.
A acreditar em Ara, estará tão bonita e perfeita como sempre.


7.12.11

Fim dos Beijos em Oscar Wilde

Há rituais quase obrigatórios, quando se fazem visitas a determinados sítios.
Acontece em cidades, países, museus - ao visitar Lisboa tem de se comer um Pastel de Belém, ao ir ao Porto e tem de se parar no Café Majestic, em Londres é preciso ver o Big Ben -, mas também acontece com cemitérios.

Uma visita a Père Lachaise inclui quase sempre uma paragem junto das grades anti-motim que cercam a campa de Jim Morrison e um beijo de batôn na campa de Oscar Wilde.
Agora já não.

Oscar Wilde (Α:1854 - Ω:1900) não teve um final feliz.
Nascido numa família irlandesa e tendo estudado em Trinity Colege - a célebre universidade no coração de Dublin - as suas peças e poemas transformaram-no numa celebridade da sociedade vitoriana de 1880 e 1890.
Casado e pai de dois filhos, foi preso por conduta homossexual na cadeia de Reading, nos arredores de Londres. As condições adversas da cela, os maus tratos e humilhações quebraram-lhe o espírito e destruíram-lhe a saúde; passados dois anos, regressou à liberdade e exilou-se no continente, acabando por se refugiar em Paris.
Na miséria e com uma saúde muito debilitada, viria a morrer com apenas quarenta e seis anos, vitima de uma meningite e de uma infecção no aparelho auditivo.

Foi enterrado numa campa temporária no cemitério de Bagneaux, coberto com cal, numa tentativa de acelerar o processo de decomposição, mas, estranhamente, a cal teve o efeito contrário e preservou o corpo.
Passados nove anos, Robert Ross mandou levantar os restos mortais do seu amigo Wilde e levou-os a sepultar no cemitério de Père Lachaise, tendo sido encomendada uma escultura a Jacob Epstein (Α:1880 - Ω:1959) .

Epstein concebeu uma representação de Wilde enquanto um mensageiro alado, num estilo art deco egípcio.

O "anjo" de Wilde está numa posição fora do comum, deitando, num simulacro de voo, os braços estendidos ao longo do corpo e as asas, estilizadas, abertas.
Estas características seriam já suficientes para colocar de sobreaviso algumas personagens mais conservadoras, mas o verdadeiro pomo da discórdia consistiu nos órgãos genitais da figura.

Quando, após três anos a trabalhar na peça, o escultor chegou a Père Lachaise para concluir a instalação, encontrou o seu trabalho coberto por um pano e rodeado de polícias: aparentemente o conservador do cemitério considerara a obra "indecente" e banira-a.

A pressão da massa intelectual parisiense não foi suficiente para para levantar a sanção, mas - talvez inspirado pela bula do Papa Paulo IV que, em 1557, institucionalizou o uso das folhas de figueira para cobrir os genitais em obras de arte e certamente não querendo ir tão longe quanto o Papa Pio IX que as mandou castrar - o curador do cemitério acabou por mandar cobrir os genitais da estátua com uma placa que fazia lembrar uma folha de figueira, antes de aceitar a sua exposição em 1914.

Literalmente, do noite para o dia, a placa/folha desapareceu e com ela parte dos genitais do mensageiro alado.
Reza a lenda que em 1922 alunos universitários invadiram o cemitério na calada da noite e, após retirarem a folha de figueira, partiram parte dos ofensivos genitais e levaram-nos.
Outra versão, mais colorida, diz que duas senhoras inglesas ficaram ofendidas com a generosidade com que Epstein representara os genitais do poeta e decidiram tratar do assunto pessoalmente, emasculando a estátua e deixando o ofensivo pedaço de pedra junto do pedestal. Diz-se ainda que o curador do cemitério o recolheu e passou a tê-lo na sua secretária, servindo-se dele como pisa-papéis.
Seja como for, a estátua ficou como a podemos ver agora.

A campa de Oscar Wilde, à semelhança da sua residência em Dublin, tornou-se local de peregrinação para os fãs; aparentemente, durante décadas, estes iam deixando mensagens escritas na pedra e em 1990 os descendentes de Wilde mandaram limpar a estátua e, ao mesmo tempo, conseguiram-lhe o estatuto de monumento histórico.
Foi então que, ao pararem as mensagens, começaram os beijos. Sempre com tons cor-de-rosa ou vermelho, os fãs de Wilde iam beijando a campa, deixando o seu tributo marcado na pedra com batôn.
Sempre encarei esse gesto como uma homenagem e não como vandalismo, mas os descendentes do poeta pensaram de maneira diferente e mandaram novamente limpar a campa, a tempo para a comemoração dos cento e onze anos sobre a morte de Oscar Wilde, que ocorreram no passado dia 30 de Novembro (dia de morte que partilha com Fernando Pessoa).
Ao reinaugurar a peça, fizeram-na cercar por um vidro espesso, colocado a cerca de meio metro da campa, terminando assim com o ritual de décadas.


Conseguiram acabar com os beijos de batôn na pedra, mas isso não garante que os fãs não continuem a deixar a sua homenagem a Oscar Wilde.
Se calhar, passando agora a beijar o vidro...


Adenda: em 2006, Wes Craven realizou o segmento no cemitério de Père Lachaise, usando a sepultura de Oscar Wilde e o ritual dos beijos de batôn, para o filme Paris, Je T'aime. Até Oscar Wilde aparece como personagem.



Com um obrigada à tafófila Raquel Pais.

3.7.11

Falecidos Famosos: Jim Morrison

Ninguém sabe exactamente o que aconteceu na madrugada de 3 de Julho de 1971, em Paris, no terceiro andar direito do nº17 da rua Beautreillis.

O que se sabe é que uma certidão de óbito foi assinada, declarando que James Douglas Morrison (Α:1943 - Ω:1971) falecera, devido a uma paragem cardíaca.

Nascido no seio de uma família de tradição militar, Morrison e os irmãos mudavam de casa com frequência, sempre que o pai, oficial da marinha norte-americana, era destacado para uma nova base. Não era fácil manter amizades nestas condições, mas o jovem Morrison contava sempre com os seus livros, que o acompanhavam para todo o lado.

Aos quatro anos foi confrontado com um acidente de automóvel que, apesar de recordar de forma muito diferente dos restantes ocupantes da viatura, o marcou profundamente.
Morrison dizia ter sido possuído pelo espírito de um velho xamã que morria na berma da estrada e que isso lhe mudara o destino.
Várias foram as canções e poemas que saíram das mãos de Morrison influenciadas por este evento.

Ao terminar o liceu, Morrison mudou-se para Los Angeles onde ingressou na universidade, para estudar cinema.
Os loucos anos sessenta encontram Morrison a viver - a sobreviver - na ruas de Venice Beach, tomando LSD, dormindo no telhado de apartamentos de amigos e escrevendo. Entre os poemas dessa fase encontram-se muitas das letras das primeiras músicas dos The Doors, banda que irá criar com um colega de universidade chamado Ray Manzarek.

Mais velho que Morrison, Manzarek tocava piano desde miúdo e tinha uma banda com os irmãos, mas ao ouvir aquilo que mais tarde se transformaria em Moonlight Drive, percebeu o potencial das criações de Morrison e propôs que formassem uma banda.

Assim nasceram os The Doors.
O nome, inspirado por um trabalho de Aldous Huxley, vinha originalmente de uma linha de um poema de William Blake.

Morrison dizia ouvir concertos completos na cabeça e tudo o que fazia era registar as músicas que ouvia, antes que estas lhe fugissem. Eram bem conhecidos os excessos de Morrison com as drogas psicotrópicas e o álcool.

Juntaram-se à banda Jonh Densmore e Robby Krieger, respectivamente baterista e guitarrista. Uma das paixões de Krieger - compositor de algumas das mais conhecidas canções da banda, como Light My Fire - o efeito de bottleneck, que torna o som da guitarra quase etéreo, ajudou a dar corpo a Moonlight Drive, a música que, segundo algumas más línguas, conta a história de um assassinato.

Ninguém sabe exactamente como Jim Morrison e Pamela Courson se conheceram, mas todas as versões os colocam juntos desde os primeiros concertos da banda, quando uma Pam acabada de sair do condado de Orange entrou num dos bares de Venice Beach em que os The Doors actuavam.
Uma das versões mais coloridas conta que Densmore a viu "primeiro," mas Pam apaixonou-se pelo futuro Rei Lagarto, um Morrison ainda envergonhado, que cantava no palco de olhos fechados e costas voltadas para o público. Quando Jim se aproximou da mesa que Pam e uma amiga partilhavam com Densmore, foi amor à primeira vista.
Diz-se que é esse o principal motivo das repetidas incompatibilidades entre Morrison e Densmore: Densmore nunca perdoou a Morrison ter sido ele a "ficar com a miúda".
Os amigos do casal, especialmente Manzarek, compararam Jim e Pam ao trágico casal de Shakespeare, Romeu e Julieta.

Durante uma actuação no famoso bar Whisky a Go Go, os The Doors foram finalmente descobertos por Paul Rothchild da Elektra Records.

Seguiram-se os álbuns, carregados de sucessos. A fama foi quase imediata e Morrison passou a ser reconhecido na rua.
As fãs arrastavam-se aos seus pés e, ao longo dos anos, Morrison foi coleccionando casos atrás de casos, alguns com outras personalidades conhecidas, como Nico de Velvet Underground.
Um dos casos mais famosos e discutidos foi com Patricia Kennealy, jornalista e critica de rock, que afirma ter casado com Morrison em 1970, por meio de um casamento pagão que não chegou a ser registado junto das entidades oficiais.

No entanto, quando em Março de 1971, após o lançamento de L.A. Woman - o último álbum de estúdio da banda - Morrison, decide abandonar os Estados Unidos e refugiar-se em Paris, leva consigo Pam Courson.
O objectivo de Morrison era afastar-se da música e aproveitar o anonimato da cidade francesa para regressar à escrita.

Pam chamava-lhe o seu poeta e, pouco tempo antes de morrer, Morrison disse a um jornalista que, aos 27 anos, estava demasiado velho para continuar a ser uma estrela do rock.
A vontade de mudança, a ansiedade pela liberdade e espaço de criação sem as amarras de uma banda, pareciam fazer de Paris um novo começo, mas em vez disso, a cidade da Luz foi apenas o final da história.

A versão mais comum diz que Morrison se sentiu mal durante a noite, com dificuldades de respiração e náuseas, por isso levantou-se da cama e foi tomar um um banho quente, esperando sentir-se melhor.
Pam acordou por volta das três horas da manhã e viu que estava sozinha na cama. Jim ainda não tinha regressado; levantou-se e foi procurar Morrison, encontrando-o no banho, imerso em água tépida, a cabeça repousando na borda da banheira.
Chamou-o e tentou acordá-lo.
Quando não obteve resposta, tentou tirar Morrison da banheira, mas não foi capaz. Consta que Pam ligou a Alain Ronay e Agnès Varda, que a ajudaram a chamar a policia e a tratar das questões legais.

Sem uma autópsia e enterrado rápida e anonimamente num pequeno e escondido talhão no canto do poetas no cemitério parisiense de Père Lachaise, a lenda de Morrison cresceu.
Há quem diga que o cantor simulou a própria morte, tendo viajado para a África do Sul; outros aceitam a morte, mas negam as causas, falando em overdose. Um momento de engano, em que Morrison teria snifado heroína de Pam julgando tratar-se de cocaína.

O pequeno talhão tornou-se rapidamente local de peregrinação, mas a vandalização da campa de Morrison e das campas mais próximas obrigou as as autoridades francesas a isolar a campa de Morrison com a ajuda de grades anti-motim que impedem a aproximação. Ainda assim, o busto de bronze de Morrison que pode ser visto no final do célebre filme The Doors de Oliver Stone (baseado no livro de Jonh Densmore Riders On The Storm) foi roubado em 1988 e não foi ainda substituido.
Apesar de todos os cuidados, flores, poemas, cartas, discos, garrafas, tabaco e charros podem ser vistos sobre a campa de Morrison.

Regressada aos Estados Unidos e três anos depois, também aos vinte e sete anos de idade, Pamela Courson morreu com uma overdose. Contrariamente aos seus desejos, o corpo não foi levado para Père Lachaise e enterrado junto de Jim Morrison.
Com a morte de Pam, perdeu-se a verdade sobre os últimos momentos de Jim Morrison, seja ela qual for.
Segundo Manzarek, Pam ter-lhe-à dito que as últimas palavras de Morrison foram "Pam, are you still there?..."

...and our love becomes a funeral pyre.


23.6.11

O Funeral de Lord Byron

"Em 12 de Julho de 1824, o sol iluminou uma fantástica procissão. Enquanto a multidão, silenciosa e triste, se juntava para ver o cortejo, cavalos negros de ébano, enfeitadas com plumas também negras, puxavam um grande carro funerário através das ruas de Londres. Logo atrás, seguiam três carruagens com os amigos fiéis do morto. Depois, um a um, passaram os quarenta e sete coches das famílias mais nobres de Inglaterra; símbolos bizarros no funeral de um poeta homenageado pelo Mundo, mas desprezado pelo seu próprio país, os choches iam vazios. Nas casas ao longo do caminho, as mulheres respeitáveis apenas ousavam espreitar o estranho ritual por entre as cortinas das janelas. Mesmo depois de morto, George Gordon, Lord Byron, era ainda evitado pela alta sociedade.
Durante quatro dias, o carro funerário, acompanhado agora somente pelos cangalheiros, prosseguiu solenemente para norte em direcção a Nottingham. Nas pequenas vilas do caminho, plebeus respeitosos juntavam-se para o ver passar, sem dúvida surpresos por ter sido negada a este poeta, o mais popular da época, a honra de ser sepultado no Canto dos Poetas da Abadia de Westminster. Em vez disso, o seu corpo seria inumado no jazigo de família, numa igreja humilde perto da casa dos seus antepassados.
Tendo morrido aos trinta e seis anos, durante mais de quinze Byron fora adorado e desprezado, temido e emulado."

in Os Grandes Mistérios do Passado
Selecções do Readers's Digest.

17.3.11

Eternos Parisienses

Para a maioria dos tafófilos, a caça às campas de famosos não é o principal atractivo num cemitério, mas para o visitante comum - que, ao contrário dos primeiros, não nutre um especial carinho por estes espaços - encontrar -se o local do repouso eterno de um nome sonante é, sem dúvida, um dos principais atractivos para cruzar os portões dos cemitérios.

Ainda que em Portugal este tipo de turismo não seja ainda comum, lá fora é extremamente popular e a prova disso são, por exemplo, as multidões que visitam o cemitério parisiense de Père Lachaise ou os autocarros de turismo que param diariamente à porta do cemitério Monumentale de Milão para visitas guiadas.

Normalmente, no próprio local, é possível comprar (ou receber gratuitamente) brochuras com as plantas dos cemitérios, onde os jazigos dos mais famosos residentes se encontram destacados, e que permitem ao visitante não se perder e descobrir com maior facilidade a campa pretendida. No entanto, este tipo de brochuras não costuma ter muito mais informação para além da localização e do nome e, muitas vezes, sentimos vontade de saber mais.
Outras vezes, queremos planear a viagem cuidadosamente e escolher quais os espaços a visitar, e as campas a não perder, e antes de ir não temos acesso às brochuras.
Felizmente, a Internet já nos permite a consultas de sites dedicados a alguns dos cemitérios, com acesso às plantas e outra informação preciosa; ainda assim, nada como ter um guia de bolso, completo e detalhado, contando histórias interessantes; não só sobre os falecidos, mas também sobre as suas campas, monumentos e o cemitério em si.

No âmbito dos Guias Cemiteriais existe uma colecção que merece destaque: a The Permanent Series desenvolvida por Judi Culbertson e Tom Randall.

Até ao momento existem já 5 volumes:
Vamos começar por Permanent Parisians.
Os autores dedicam os quatro capítulos iniciais a Père Lachaise, o que não é surpreendente, se considerarmos a profusão de falecidos famosos que estão enterrado neste cemitério.

Recordamos alguns:
  • Jim Morrison;
  • Georges Rodenbach;
  • Frédéric Chopin;
  • François Raspail;
  • Gustave Doré;
  • Jean La Fontaine;
  • Allan Kardec;
  • Honoré de Balzac;
  • Eugène Dlacroix;
  • Oscar Wilde;
  • Edith Piaf;
  • etc.
Há ainda tempo para falar nos afamados Passy, Montparnasse e Montmartre, para dedicar um capítulo ao Panteão, outro (pequeno) às Catacumbas, sem esquecer pequenos cemitérios suburbanos e igrejas onde foram realizadas inumações diversas, como St. Denis.

O guia está ilustrados com fotografias a preto e branco que permitem visualizar os locais a visitar.

Este é o guia essencial para qualquer tafófilo de visita a Paris, mas mais que isso é um instrumento rico, com um manancial de informação incontornável, sobre as personalidades enterradas em Paris e as suas histórias de vida, mas em especial, as suas mortes.

Mesmo para quem não esteja a planear um visita à cidade da Luz, vale a pena adquirir e ler esta obra.


25.2.11

Tafofilia no Jornal Expresso

A tafofilia anda no ar; de tal forma que até já chegou ao jornal Expresso.

No passado dia 12 de Fevereiro, a revista Única - parte integrante do referido jornal - publicou um artigo intitulado de O Lugar do Morto onde apresenta uma lista dos Falecidos Famosos mais visitados.
  1. Jim Morrison - Cimetière du Père Lachaise (Paris, Ile-de-France Region, France);
  2. Anne Frank - Cenotáfio (vala comum) - Beth Olam Cemetery (Los Angeles, Los Angeles County, California, USA);
  3. John F. Kennedy - Arlington National Cemetery, (Arlington, Arlington County, Virginia, USA);
  4. Joseph Estaline - Kremlin (Moscovo, Rússia);
  5. Albert Einstein - Cenotário (cremado) - Institute for Advanced Study (Princeton, New Jersey, USA);
  6. Walt Disney - Forest Lawn Memorial Park (Glendale, Los Angeles County, California, USA);
  7. Martin Luther King - Martin Luther King, Jr. Center (Atlanta, Fulton County, Georgia, USA);
  8. Winston Churchil - St Martin-in-the-Fields Churchyard (London, Greater London, England);
  9. Harry Houdini - Machpelah Cemetery (Ridgewood, Queens County, New York, USA);
  10. Che Guevara - Guevara Mausoleum (Santa Clara, Villa Clara, Cuba);

14.2.11

Falecidos Famosos: Lizzie Siddal

Numa escura noite de Outono, no ano de 1869, uma macabra procissão trilhou os caminhos do Cemitério de Highgate. Com a ajuda de candeeiros, os coveiros liam os nomes nas pedras tumulares, procurando por um túmulo especial. Uma vez encontrado, juntaram uma pilha de lenha e acederam uma fogueira de labaredas trémulas; em seguida, agarraram nas pás e enxadas que traziam com eles e começaram o trabalho.
Durante horas nada mais se ouviu a não ser o crepitar das chamas, fustigadas pelo vento, e o barulho monótono das pazadas a retirar terra. Por fim, o embate de metal em madeira: o ressoar oco de um caixão. Mais terra e vozes murmurantes - envergonhadas. Cordas estalaram e os homens içaram o esquife para fora da cova.
Alguém se aproximou dele, sem temor, e fez saltar a tampa com esforço. Os restantes recuaram, assustados.
Dizem que o rosto conservara a beleza: incorrupto.
Dizem que os seus luxuriantes cabelos ruivos enchiam o caixão com lampejos de fogo, tendo continuado a crescer depois da morte.
Dizem que parecia adormecida, linda, perfeita, como nas telas onde foi pintada até à exaustão.
Uma mão desceu entre os cabelos e o rosto do cadáver e regressou com um manuscrito encadernado a couro. O mesmo homem fez sinal aos coveiros: mandou fechar o caixão e devolvê-lo à terra, voltado a enterrar a imortal Elizabeth Siddal.

Elizabeth Siddal (Α:1829 - Ω:1862), a ruiva que inspirou a Irmandade Pré-Rafaelita, viveu uma das mais belas e trágicas histórias de amor do século XIX.

Descoberta aos vinte anos enquanto trabalhava numa loja de chapéus, os seus magníficos cabelos ruivos, a magreza e o rosto fora do comum rapidamente a tornaram na modelo favorita do grupo de jovens pintores que pretendia revolucionar o mundo artístico vitoriano. O seu primeiro grande sucesso enquanto modelo viria das mãos do talentoso Millais.
No Inverno de 1852, este pintou-a morta, encarnando Ofélia, num vestido branco flutuante, rodeada de flores e afogada numa ribeira.
Na realidade, Lizzie quase morreu, de facto, durante a realização deste trabalho: Millais tinha uma enorme banheira no atelier, que enchia de água quente e onde fazia Lizzie deitar-se tardes inteiras, flutuando, numa simulação do riacho.
Para manter a água quente, Millais acendia um conjunto de lamparinas sob a banheira. Numa das últimas sessões, as lamparinas apagaram-se e Lizzie, não querendo interromper o pintor, deixou-se ficar na água, gelando.
Essa tarde resultou numa pneumonia que muito a debilitou e da qual nunca recuperou completamente.

Entretanto, Dante Gabriel Rossetti - um dos mais talentosos artistas do grupo - apaixonou-se perdidamente por Lizzie e não a deixava posar para mais ninguém.
Rossetti tornou-se o seu mentor, ensinando-a a desenhar e pintar. Os seus trabalhos chegaram a ser expostos com os dos restantes elementos da Irmandade Pré-Rafaelita. Durante anos, Lizzie e Rossetti viveram um para o outro, num amor que ficou registado nos inúmeros trabalhos do artista, onde cabelos ruivos enchem as telas de fogo.

Christina Rossetti, irmã do pintor, escreveu a propósito desses amores:
"He feeds upon her face by day and night,
And she with true kind eyes looks back on him,
Fair as the moon and joyful as the light:
Not wan with waiting, not with sorrow dim;
Not as she is, but was when hope shone bright;
Not as she is, but as she fills his dream."
Lizzie foi uma mulher de saúde frágil, incorrendo muito cedo no vício do láudano, que lhe alterava continuamente a disposição, e a relação com Rossetti, atribulada e cheia de traições e mágoas, deixava-a prostrada e triste, naquilo que os especialistas e estudiosos consideram ter sido um estado de depressão crónica. Lizzie viajou para fora de Londres várias vezes para tratar dos nervos, quase terminando o seu affair com Rossetti pelo menos numa das ocasiões, para desesperar de saudades, piorar seriamente o sempre precário estado de saúde e obrigar Rossetti a deixar trabalho, amores e amigos em Londres, rumando, semi-enlouquecido, para onde quer que Lizzie definhasse.

A proposta de casamento só aconteceu sobre um leito que todos esperavam ser de morte e foi carregada de arrependimento e culpa; mas ao casar, Rossetti prometeu ser fiel a Lizzie e todos os factos conhecidos fazem-no cumpridor dessa promessa.

Quando Lizzie se suicidou, Rossetti quase enlouqueceu e depositou um manuscrito de poemas dentro do caixão dela, sob os belos cabelos ruivos, prometendo-lhe amor eterno.

No lento processo de luto pintou um dos seus mais belos e louvados trabalhos "Beata Beatrix", representando Lizzie no momento final, de olhos fechados, recebendo uma papoila - alusão ao ópio - do bico de uma fénix - renascimento, ressurreição, imortalidade, vida após a morte...
Dizem que se fecharmos os olhos, conseguimos ouvir o último suspiro de Lizzie, vindo dos lábios pintados por Dante.

Sete anos depois, é um Rossetti enfraquecido e incapaz de pintar que se deixa convencer por um agente a pedir uma autorização para exumar o corpo de Lizzie e recuperar o manuscrito, mas é incapaz de estar presente durante a exumação.

O caderno recuperado tem um conjunto de poemas belíssimos, originalmente escritos para Lizzie, mas o seu novo livro - uma mistura de trabalhos inéditos com os recuperados em Highgate - não é bem recebido pela critica.

No final da vida, Rossetti pediu para não ser enterrado no talhão da família junto de Lizzie. Disse-se que foi por remorsos.


Família Rossetti no Cemitério de Highgate

9.2.11

Falecidos Famosos: Chopin

É inevitável que um weblog dedicado à Tafofilia mencione Frédéric Chopin (Α:1810 - Ω:1849). Chopin foi um brilhante pianista polaco, professor de música e compositor de excelência; é graças a ele que o piano passou a ser visto como um instrumento a solo. Aquela que é, talvez, a mais célebre de todas as marchas fúnebres foi composta por Chopin. Aliás, todos os seus Nocturnos têm qualquer coisa de lúgubre, de funerário, na sua sonoridade de cadências lentas e graves, mesmo os que se poderiam considerar mais animados.

Chopin nasceu na Polónia, mas abandonou a terra natal aos vinte anos. Morreria antes de completar quarenta, em Paris, rodeados de amigos e admiradores, mas sem o seu grande amor: George Sand, a controversa romancista do século XIX.

A relação entre Chopin e Sand foi muito comentada na época e terminou em 1847, dez anos depois de se ter iniciado, na sequência da publicação de Lucrezia Floriani em 1846, onde Sand retrata o seu romance com Chopin, apresentando-o numa luz muito pouco simpática e chamando a si o papel de mártir.

Apesar disso, consta que o golpe final na relação esteve relacionado com Solange, filha de George Sand, muito acarinhada por Chopin. Os motivos diferem consoante a fonte: alguns defendem que Chopin tomou o partido de Solange e o marido, o escultor Auguste Clesinger, face a questões de dinheiro, contra Sand; outros dizem que Chopin não gostava de Clesinger, considerando-o mesmo um escroque, e que se opunha ao casamento dele com Solange, mas Sand via o enlace com bons olhos.

Chopin foi um homem doente, continuamente enfraquecido por uma crónica doença pulmonar - que à altura se julgava ser tuberculose, mas que actualmente se concluiu por fibrose quística - que acabou por o vitimar no regresso de uma "tour" pelo Reno Unido. O seu coração, de acordo com o último desejo, foi retirado, preservado numa urna de cristal e enviado para Varsóvia, onde se encontra até hoje. Foi poupado da destruição da cidade durante os bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial por um General da SS. Mais tarde foi devolvido à cidade e encontra-se na Igreja da Santa Cruz.



Outras das últimas vontades do pianista foi ter o Requiem, de Mozart, tocado no seu funeral. O facto da igreja não aceitar cantoras femininas obrigou a um adiamento da cerimónia por duas semanas, até chegarem a um acordo: as cantoras actuariam cobertas por um pano negro, para não serem vistas. Junto ao túmulo, enquanto alguns cobriam o caixão com terra trazida da Polónia, tocou-se a sua Marcha Fúnebre Op. 35.

A penúria em que se encontrava no momento da morte levou a que o funeral fosse pago pelos seus amigos, que se reuniram no Cemitério de Père Lachaise para um último adeus: apareceram mais de 3 000 pessoas. Entre eles estavam Delacroix, Liszt e Victor Hugo; a ausência de Sand foi notada por todos.

Talvez por ironia, foi Clesinger quem foi chamado, na manhã de 17 de Outubro de 1849, para fazer a máscara de morte de Chopin, criando também moldes das suas talentosas mãos. Mais tarde, é também a este escultor que é encomendado o monumento que encima a campa do músico, uma das mais visitadas em Père Lachaise e sempre repleta de flores.
A recepção da peça de arte não foi calorosa e muitos críticos consideraram-na mesmo medíocre, lamentando que seja ela a marcar a última morada deste notável homem.

Se for a Père Lachaise, é uma visita obrigatória.