6.1.25

WANTED: Medalhões de Vidro

No contexto das minhas investigações, tenho encontrado vários elementos novos e objectos curiosos. Gosto sempre de saber mais sobre as coisas com que me vou cruzando; aliás, foi assim que comecei a investigar e estudar cemitérios: não me bastavam as imagens que ia registando nas minhas fotografias, precisava de saber mais, de descobrir as histórias.

Em Dezembro de 2020 foi inaugurada a exposição Flores de Pedra | Flowers of Stone, patente ainda na galeria de exposições da Capela do Cemitério dos Prazeres. Nas paredes da galeria - para além dos painéis informativos com representações das plantas que fomos descobrindo e identificando nos cemitérios de Lisboa e a respectiva leitura simbólica contextualizada - encontram-se vários objectos fúnebres, recuperados pela Divisão de Gestão Cemiterial da Câmara Municipal de Lisboa em jazigos particulares abandonados. Esse material, riquíssimo para desenvolver o nosso conhecimento relativamente aos rituais e práticas fúnebres portuguesas no século XIX e XX, faz parte do acervo museológico dessa divisão.

Dos elementos que integram a exposição - todos eles apresentando bonitas e simbólicas flores - encontra-se um conjunto de medalhões de vidro que despertaram a minha curiosidade.

Trata-se de vidro simples, aparentemente forrado com jornal do lado que fica voltado para a moldura metálica de suporte, pintados com cenas de luto, num estilo um pouco naif.

Não encontrei bibliografia que refira estes elementos ou me dê pistas para perceber melhor quem os fazia, como se comercializavam, se eram encomendas ou trabalhos de série, etc. Falta quase tudo, no entanto, tenho já algumas pistas que partilho convosco.

1. O nome "medalhões", que estou a utilizar para designar estes objectos, está na lista de serviços e produtos que eram comercializados pela Agência Funerária Cereeiro, que ficava na Rua da Junqueira (lembro-me de passar por ela tantas vezes, mas entretanto já não se encontra lá). Esta informação foi encontrada numa factura de funeral de 1909, gentilmente disponibilizada por Fernando Oliveira, responsável pelo Museu Funerário Fernando Oliveira (que merece uma visita).

2. Percebemos claramente alguns dos contextos de uso a partir de fotografias antigas, tirada nos cemitérios de Lisboa, em que vemos medalhões destes pendurados no interior dos jazigos e até no exterior, em obeliscos e colunas de jazigos subterrâneos.

Tirando estes dois pontos, sabemos ainda muito pouco. O que nos leva ao poster de WANTED do topo deste post: alguém tem informação disponível? 

A informação pode ser directamente sobre estes elementos, de alguém que se recorde ou conheça histórias de ver vender ou comprar, de ter nos seus jazigos ou pode ser no formato de antigas facturas de funerais que possam referir estes artigos.

Se alguém tiver informação, pode enviar para o email Blog.MortSafe@gmail.com ou contactar-me directamente a partir do Facebook ou do Instagram do Mort Safe.

Seria maravilhoso encontrarmos juntos mais informação sobre estes curiosos medalhões de vidro.

Obrigada a todos e passem a palavra, por favor!


29.6.24

Boletim Cultural dos Cemitérios de Lisboa - Número 3

Neste mês de Dezembro chegou também o número 3 do Boletim Cultural dos Cemitérios de Lisboa que, de acordo com a release note que chegou por email:

«para além das rubricas habituais Simbologia, Monumentos Sepulchraes, Echos do Passado e Pedras & Obras, convidamos os leitores a descobrir aqueles que são hoje os destinos possíveis, em Portugal, para o corpo após a morte, os desenvolvimentos tecnológicos nesta área e outras opções noutros locais do mundo»

Na minha rubrica Echos do Passado, escrevi sobre as profissões associadas à morte que existiam na Lisboa da década de 1920, a partir de um artigo da fantástica revista ABC.

O Boletim parece-me que será uma excelente companhia para estas férias de Verão.

31.5.24

A Última Morada Bordalo Pinheiro em PT e EN

 E com o mês de Maio chegaram duas surpresas sob a forma de publicações (em papel e digital) do meu artigo sobre o jazigo particular dos Viscondes de Faro e Oliveira que, desenhado pelo genial Rafael Bordalo Pinheiro, também nele se encerram os seus restos mortais.

Este artigo, tendo nascido no decurso de uma investigação no contexto do meu mestrado em História da Arte, acabou por ser estendido, detalhado, aprofundado e transformado com vista à publicação numa versão em português e em inglês.

A versão em português foi apresentada na conferência "In Memoriam" Passado, presente e futuro dos cemitérios como espaços de memória, organizada pelo Prof. Francisco Queiroz e pela Santa Casa da Misericórdia de Braga, tendo sido agora publicada no volume de actas deste evento. Quem não tiver a sorte de conseguir comprar uma cópia, poderá encontrar online os vários artigos, que estão a ser disponibilizados pelos autores.

Se quiserem ler o meu artigo, intitulado Jazigo Particular N.º 4099: A Última Morada de Rafael Bordalo Pinheiro, podem seguir esta ligação.

Entretanto, fiz uma versão do artigo em inglês, com as necessárias adaptações para um público não português, procurando contextualizar o artista Rafael Bordalo Pinheiro e o seu trabalho no nosso século XIX, assim como o surgimento do neo-Manuelino neste período e a sua captação como gramática ornamental em monumentos fúnebres nos cemitérios de Lisboa. 

Este trabalho foi apresentado na conferência da AGS - Association for Gravestone Studies em 2022 e submetida à revista norte-americana Markers, foi também publicada agora, no volume XXXIX da revista.

Ainda não há versão digital, mas quem quiser a versão de papel pode encomendar para este endereço de email. A revista é distribuída gratuitamente a todos os membros da AGS.


22.12.23

Boletim Cultural dos Cemitérios de Lisboa - Número 2

Neste mês de Dezembro chegou também o número 2 do Boletim Cultural dos Cemitérios de Lisboa que, de acordo com a release note que chegou por email 

«para além das rubricas habituais Simbologia, Monumentos Sepulchraes, Echos do Passado ou Pedras & Obras, contamos com a participação de  Rafaela Ferraz, autora convidada, que nos traz o fascinante artigo O Caso dos Crânios: A Coleção Ferraz de Macedo»

Na minha rubrica Echos do Passado, escrevi sobre a - entretanto esquecida - Batalha da Ajuda, que aconteceu no interior do Cemitério da Ajuda em Julho de 1925.

Aqui fica uma excelente proposta para a semana das festas, para irmos lendo enquanto não chega 2024.

8.12.23

Tafofilia ou a Arte de Amar a Morte

Ontem decorreu a sessão de apresentação do quarto número da revista P'ARTE: recolhas poéticas que, para este volume, escolheu o título Sympathy For The Grave e o tema da tafofilia – gosto ou atracção por cemitérios – como ponto de partida para as contribuições dos autores. 


Organizada por Alexis F. Viegas e Patrícia Sá, com a parceria da Fábrica do Terror, trata-se de uma fanzine do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sob a chancela do subgrupo de investigação SYNESTHESIA, integrado no grupo THELEME — Estudos Interartes e Intermedia.

Para a apresentação foi organizado o painel A Tafofilia entre a Arte e a Investigação, com a moderação dos organizadores Alexis F. Viegas e Patrícia Sá e com a minha participação e da Francisca Alvarenga.

Tive o privilégio de ser responsável pelo prefácio da revista, intitulado Tafofilia ou a Arte de Amar a Morte e que podem ler online seguindo esta ligação.

Se quiserem a revista completa em formato digital, podem seguir esta ligação, encontrando vários artigos, poemas, desenhos, fotografias, incluindo uma colaboração minha com o escritor e historiador David Soares: as palavras dele e as minhas imagens.

Mais uma vez, parabéns ao Alexis F. Viegas e à Patrícia Sá pelo excelente trabalho e pela ousadia de trazer este tema para um contexto académico e criativo.


15.9.23

«Casa de Autópsias»: do modelo parisiense ao cemitério enquanto substituto da Morgue na Lisboa de Oitocentos

Há uns anos atrás descobri que, na Paris do século XIX, se visitava a Morgue da cidade como quem vai ao teatro ou ao jardim.

Fiquei fascinada com o tema e fui comprando livros e procurando fontes e até escrevi um pequeno texto aqui para o blog

Em 2021 e 2022 tive a oportunidade de investigar o tema com maior profundidade, procurando também a resposta lisboeta para os problemas que eram endereçados pela Morgue de Paris.

Escrevi um artigo que é agora publicado no segundo número da Revista RomantHis, uma revista científica de acesso aberto sobre o Longo Século XIX no Mundo Português, entendido num sentido lato, enquadrando quatro grandes vertentes: História, Arte, Cultura e Património.

A revista é uma publicação periódica digital é da responsabilidade do Grupo "Saudade Perpétua" e propriedade da HistóriaSábias - Associação Cultural, coordenada por Francisco Queiroz (director), Cristina Moscatel (directora adjunta).


Podem ler o meu artigo «Casa de Autópsias»: do modelo parisiense ao cemitério enquanto substituto da Morgue na Lisboa de Oitocentos seguindo esta ligação.

Este é ainda um tema em desenvolvimento e com várias linhas de investigação em aberto, mas o meu artigo pretende, desde já, ajudar a olhar para os cemitérios de outra forma e a procurar mais pistas e informações.

Espero que gostem.


23.5.23

O Crime dos Prazeres

A 21 de Maio de 2023 assinala-se o centenário da morte do 9.º Conde de Sabugosa: António Maria Vasco de Melo Silva César e Meneses, escritor, historiador, diplomata e mordomo-mor da Casa Real portuguesa. Figura incontornável das letras portuguesas na passagem do século XIX para o XX, integrou o grupo Vencidos da Vida (tendo sido até o penúltimo elemento a falecer, poucas semanas antes do poeta Guerra Junqueiro), expirando aos 71 anos.
O funeral foi agendado para o dia seguinte no cemitério dos Prazeres, para o jazigo particular n.º1587 (construído em 1866) – o mesmo que albergou temporariamente em 1915 os restos mortais de Ramalho Ortigão, outro Vencido da Vida, enquanto a família deste mandava construir o jazigo que agora o acolhe no cemitério do Alto de São João. 
Esperava-se uma enchente no cemitério dos Prazeres para o funeral do Conde de Sabugosa e o polícia a quem foi confiada a tarefa de manter a ordem durante a cerimónia diria depois ao jornal O Século que um pressentimento o levara a pedir reforços à esquadra da Estrela, que lhe enviara os polícias de piquete. 

Arquivo Fotográfico do jornal O Século
Torre do Tombo 
Perto das 17:00 horas, já terminada a cerimónia e quando muitos dos acompanhantes se retiravam, aconteceu o impensável: o silêncio murmurante do cemitério foi rasgado por três tiros de pistola. Na altura, houve quem dissesse terem sido cinco, mas foram três – suficientes para matar um homem. 
Por entre as sombras dos ciprestes, encoberto pelos jazigos e perscrutando a multidão, António Nunes Canha aguardara Adolfo do Couto Viana, o gerente da fábrica da Companhia União Fabril (CUF) nas Fontaínhas, que tinha ido ao funeral do Conde de Sabugosa em representação de Manuel José de Melo: director da CUF e sobrinho do falecido. Pouco tempo antes, Nunes Canha fora despedido por Adolfo Viana; no dia do funeral, vendo-o passar a caminho do cemitério, seguiu a carruagem e decidiu recorrer à violência. Por entre gritos e corridas, Adolfo Viana perdia a vida, sangrando no chão sagrado do cemitério. 
Talvez em choque por ter tido sucesso no atentado, Nunes Canha deixou-se agarrar pelos polícias que escoltavam o cortejo fúnebre, sendo levado para o interior do edifício da administração do cemitério, junto do portão principal, enquanto a multidão regressava, irada, apercebendo-se do que se passara no cemitério. O corpo inerte de Adolfo Viana, que o Dr. Melo Breyner – também presente no funeral – declarou morto, indignava a multidão, que gritava pelo assassino, apelando à justiça popular. 

Arquivo Fotográfico do jornal O Século
Torre do Tombo 
O fotógrafo do jornal O Século que registou a procissão fúnebre e a entrada do caixão no cemitério teve autorização para entrar na sala onde Nunes Canha esperava com a polícia e fotografou-o, com uma expressão entre a ausência e a estupefacção: «Tanto me faz. Façam de mim o que quizerem» , reporta ter-lhe dito o criminoso quando pediu para o fotografar. Cerca de uma hora e meia depois, quando finalmente a multidão dispersou o suficiente para saírem com segurança do edifício da administração do cemitério, o fotógrafo captou o momento em partiram em direcção à cadeia do Limoeiro. O cocheiro de Adolfo Viana ainda deitou as mãos ao autor do atentado com ganas de o esganar, mas a polícia evitou-o. 
Nesse mesmo dia, na Câmara de Deputados, Paulo Cancela de Abreu, que estivera presente no funeral e por isso chegou a meio da sessão, declarou ter presenciado «o vil atentado contra o gerente da Companhia União Fabril, que o vitimou» . O seu depoimento causou sensação na câmara e o Crime dos Prazeres, como popularmente ficou conhecido, ficou ainda associado a outra situação de violência, quando à porta do Parlamento um soldado da Guarda Republicana atacou o deputado Carvalho da Silva. 
O resultado destes acontecimentos inesperados foi o de as reportagens das exéquias do Conde de Sabugosa terem sido reduzidas para dar espaço ao relato do atentado, aos detalhes sobre a vítima, sobre a vida do assassino e os seus antecedentes criminais. E, claro, dois dias depois reportava-se um novo funeral: Adolfo Viana, abatido no funeral anterior, seguindo da igreja de São Domingos para o jazigo de família no cemitério do Alto de São João. O destaque dado pelos jornais foi para a multidão que se juntou em torno da igreja, nas ruas adjacentes e para a presença notória de muitos operários. 

Arquivo Fotográfico do jornal O Século
Torre do Tombo 
Num período conturbado, com greves, atentados e bombas, o crime foi lido como um atentado político, uma afirmação ideológica. Os ânimos exaltaram-se com um assassinato perpetrado em público num cenário e um momento completamente inesperados – um cemitério e no final de um funeral. Discutiu-se a culpa de Nunes Canha e o impacto que o seu despedimento havia tido na sua conduta. Houve, inclusivamente, alguns discursos que quase procuravam justificar o acto de Nunes Canha com o seu despedimento. Nos dias que se seguiram recuperou-se o passado sindicalista do autor dos disparos e o seu papel na organização da Associação de Classe do Pessoal da União Fabril e na criação e presidência do Sindicato das Associações Rurais do Ribatejo. Até se recordou uma anterior tentativa de assassinato, quando quatro anos antes, durante a greve dos metalúrgicos, Nunes Canha atentara contra um industrial na Rua da Junqueira (acabando absolvido pelo tribunal depois de dois anos de prisão). E o caso foi-se arrastando nos tribunais, sem desfecho. 

Arquivo Fotográfico do jornal O Século
Torre do Tombo 

Sabemos que em 1925, dois anos depois do sucedido, o caso continuava por julgar no tribunal da Boa Hora por incapacidade de assegurar o número suficiente de jurados para formar um júri. Nunes Canha terá sido sentenciado ao degredo em África (de onde regressou, temporariamente, em 1942, por motivos de saúde), facto atestado por uma circular escrita por seus correligionários que procurava apoio financeiro que lhe permitisse continuar na metrópole, mas perdemos-lhe o rasto. 


O caso do Crime dos Prazeres é único em Portugal, corporizando um assassinato premeditado, perpetrado no interior de um cemitério, após um funeral.


13.4.23

Boletim Cultural dos Cemitérios de Lisboa - Número 1

Esta semana chegou o novo número do Boletim Cultural dos Cemitérios de Lisboa.

Entre o conjunto de artigos variados e de conteúdo muito interessante - sempre cemiterial, obviamente - podem encontrar o meu artigo preliminar Casas Económicas e Prédios de Rendimento: O Bairro do Estado Novo, precisamente sobre este conjunto de construções no cemitério do Alto de Sáo João, em Lisboa, mas cujas características podem ser encontradas em construções funerárias um pouco por todo o país.


Podem aceder ao Boletim Cultural dos Cemitérios de Lisboa a partir deste link.


5.2.23

A Casa Portuguesa nos Cemitérios no GetLisbon

 A fantástica página GetLisbon, que se dedica a partilhar os aspectos mais peculiares de Lisboa desde 2017 - se ainda não seguem nas redes sociais nem recebem a newsletter por email, cliquem aqui e vão até lá - convidou-me para escrever um texto sobre A Casa Portuguesa nos Cemitérios, uma temática a cujo estudo me dedico há já alguns anos.

Passem por lá e leiam. 


Obrigada pelo convite!


24.9.22

Boletim Cultural dos Cemitérios de Lisboa - Número 0

 Esta semana chegou às nossas caixas de email a seguinte comunicação a partir da lista de distribuição dos Cemitérios de Lisboa:

Este é o primeiro número do novo Boletim Cultural dos Cemitérios de Lisboa.

Temos vindo a partilhar ao longo dos últimos meses uma efeméride mensal, em que se revela uma figura pública inumada nos nossos Cemitérios.

O passo seguinte desta partilha de conhecimento é a publicação deste Boletim, que terá uma periodicidade bi-anual.


Para aceder, clique aqui.

 

9.9.22

Lista de Distribuição dos Cemitérios de Lisboa

A Divisão de Gestão Cemiterial da Câmara Municipal de Lisboa tem uma lista de distribuição para a recepção da programação mensal relativa a visitas, apresentações, exposições e as efemérides mensais.


 



6.12.20

Flores de Pedra - Exposição

A exposição "Flores de Pedra / Flowers of Stone", no âmbito de Lisboa Capital Verde Europeia 2020, foi inaugurada no passado dia 4 de Dezembro pelo Sr. Vereador da Câmara Municipal de Lisboa José Sá Fernandes e está patente na Galeria de Exposições da Capela do Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, onde pode ser visitada todos os dias até às 16:00.

Nascida de uma ideia de Sara Gonçalves, directora dos cemitérios de Lisboa, o projecto pretendeu reunir uma equipa multidisciplicar, com especialistas em botânica e simbologia, de forma a identificar as espécies de plantas que decoram os nossos cemitérios e descobrir os seus significados, tendo em conta o contexto cemiterial.

Foram vários meses de trabalho dedicado que incluíram visitas de campo, sessões fotográficas extensas, análise detalhada de imagens, pesquisa e análise de espécies, pesquisa histórica e simbólica, investigação de material de época, recuperação e restauro de peças de jazigos abandonados, concepção do projecto museológico e design, entre tantas outras tarefas essenciais para levar um trabalho como este a bom porto.

A utilização de livros e materiais do século XIX relativos à então popular Linguagem das Flores, contemporânea da maior parte dos jazigos fotografados e presentes nos nossos cemitérios permitiu enriquecer e contextualizar com maior acuidade a interpretação simbólica.


A componente da botânica ficou a cargo da Sandra Mesquita, a simbologia é da responsabilidade de Gisela Monteiro e o design e projecto museológico é de José Dias.

Vão visitar: prometemos que vai valer a pena!

Da esquerda para direita: Gisela Monteiro, Sandra Mesquita e Sara Gonçalves.


31.10.20

Asclépio, Hermes e Higia nos Cemitérios

Ao visitar um cemitério romântico, nas zonas mais antigas, onde se erguem os jazigos-capela e as sepulturas perpétuas, é comum encontrar curiosas figuras talhadas na pedra, sozinhas ou adornando epitáfios: flores, animais, instrumentos de trabalho, letras gregas, objectos do dia-a-dia, figuras humanas, símbolos de ordens. 

Cemitério dos Prazeres, Lisboa, Portugal

Quando tentamos perceber o seu significado dentro do espaço cemiterial, transparece que a escolha não foi aleatória, ainda que alguns dos donos de obra possam ter escolhido a decoração do seu jazigo a partir de catálogos ou pedindo para copiar algo que viram numa das suas visitas de domingo ao cemitério local.

Identificar e decifrar essas figuras ajuda-nos a saber mais sobre quem é a pessoa que se encontra enterrada no local, a forma como ela se via ou era vista pelos outros, aquilo de que mais gostava ou mais valorizada em vida.
Algumas das figuras não nos levam a interpretações complicadas e a recorrer dos compêndios e almaços antigos, por conseguirmos reconhecer o símbolo apresentado, por ele ainda fazer parte da nossa actualidade. E porque, por vezes, uma rosa é, realmente, apenas uma flor.

Um dos conjuntos de símbolos que parecem fáceis de identificar e decifrar são os símbolos associados à medicina e saúde. Estamos habituados a vê-los pintados em ambulâncias, representados nos placards luminosos das farmácias, nos logótipos de serviços de saúde. São normalmente compostos por serpentes enroladas em varas, árvores, taças, lamparinas de azeite.
Parece bastante claro e simples, mas porquê as variações?

Acontece que, efectivamente, estamos a falar de símbolos diferentes. 

Os que chegaram até nós mantendo o significado original são o Bastão de Asclépio e a Taça de Higia. 
Hermes representando o Comércio - Cemitério dos Prazeres,
Lisboa, Portugal
Pelo meio, aparece o Bastão de Hermes, normalmente designado de Caduceu, que inicialmente não estava associado à medicina e, por esse motivo causa alguma confusão no contexto cemiterial, onde aparece muitas vezes como representação do comércio. 

A sua associação formal à medicina surge no início do século XX, no corpo médico do exército dos Estados Unidos, que o adoptou como símbolo, ainda que existam algumas correntes que a colocam vários séculos antes, como extensão da associação de Hermes à Alquimia.
Este erro surge da utilização do caduceu nos exércitos romanos para identificar os mensageiros que, transportando um estandarte com este símbolo tinham salvo-conduto para se deslocarem no campo de batalha sem serem alvos de violência. Talvez fosse esse o objectivo inicial da selecção deste símbolo para identificar os elementos do corpo médico do exército, mas a consequência foi este ficar associado à medicina.

Podemos descrever estes símbolos, simplificadamente, da seguinte forma:
  • O Bastão de Asclépio é uma vara de madeira onde se enrola uma - e apenas uma - serpente.
  • A Taça de Higia é uma taça ou um cálice, no pé da qual se enrola uma serpente, que parece beber da taça.
  • O Caduceu é um bastão de ouro com duas serpentes enroladas, uma de cada lado; no topo do bastão aparece um par de asas e, por vezes, também o capacete de Hermes.
Para distinguir os dois bastões basta ter em atenção o número de serpentes: uma é Asclépio, duas é Hermes.

Conforme referi, Hermes não estava associado à medicina na antiguidade clássica, ao contrário de Asclépio e Higia. 
Hermes era o mensageiro de Zeus e dos deuses nos Infernos: Hades e Perséfone. Era considerado o patrono do comércio, dos ladrões, dos viajantes e dos mensageiros. 

Caduceu /Bastão de Hermes - Cemitério do Alto de São João,
Lisboa, Portugal
O caduceu era, originalmente, um cajado de ouro usado por Apolo enquanto pastoreava gado.
Conta a lenda que Hermes recebeu de Apolo esse cajado em troca de um instrumento musical: numa versão, diz-se que Hermes criou uma lira a partir de uma carapaça de tartaruga e tripas de uns bois que sacrificará aos deuses e que foi esse o instrumento trocado com Apolo; noutra versão, Apolo já teria obtido a lira em troca de um rebanho e dessa vez, para obter a flauta inventada por Hermes, teve de dar em troca o seu cajado. 
Quando recebeu o cajado de Apolo este era apenas uma vara de ouro, sem as serpentes. Depois de receber o cajado, Hermes dirigiu-se a Arcádia, quando chegou encontrou duas serpentes lutavam e se mordiam. Tentando separá-las com o cajado, elas enrolaram-se neste e pararam a violência, mantendo-se em equilíbrio. 

O caduceu é o símbolo identificador de Hermes, assim como a tesoura e o fio são o símbolo identificador de Átropos, por exemplo.

De notar ainda a ligação de Hermes ao mundo dos mortos: este era conhecido como "Acompanhante de Almas" - deus psicopompo - por ser responsável por levar as almas aos Infernos, mas até hoje ainda não encontrei essa vertente representada nos cemitérios, onde a simbologia de Hermes sempre aparece associada ao comércio ou (em jazigos mais recentes) à medicina.

Bastão de Asclépio - Campo Verano,
Roma, Itália
Asclépio, filho do deus Apolo - o mesmo que deu o caduceu a Hermes - foi em pequeno entregue pelo pai ao centauro Quíron, que lhe ensinou as artes da medicina. Asclépio, para além de ter aprendido rapidamente e apresentar grande habilidade na cura dos doentes, possuía ainda a capacidade de ressuscitar os mortos, usando para isso o sangue das veias do braço direito de uma górgona, que lhe fora dado por Atenas. 
Foi por esta capacidade de ressuscitar os mortos que Zeus o matou, receando o impacto que esta façanha poderia ter na ordem do mundo. Depois de morto, Asclépio ascendeu aos céus sob a forma da constelação Serpentário: um homem segurando uma serpente.

O seu símbolo identificador é um pau onde se enrola uma serpente, símbolo esse que representa a medicina.

São atribuídas a Asclépio várias filhas, todas elas associadas à arte da medicina nas suas diferentes vertentes, sendo uma dela Higia. 
Taça de Higia - Cemitério dos Prazeres,
Lisboa, Portugal
Higia é associada à saúde e representada segurando uma taça de onde bebe uma serpente. 
Reza a lenda que, quando Asclépio foi morto por Zeus, as serpentes que viviam e guardavam as fontes de águas medicinais abandonaram-nas e refugiram-se nos templos de Asclépio, onde ficavam imóveis no chão, em sofrimento. 
Higia, por afecto ao pai, cuidava dessas serpentes enlutadas, oferecendo-lhes de beber a partir de uma taça. 
É do nome de Higia que surge a palavra higiene, considerada uma das componentes essenciais à manutenção da saúde.

O símbolo identificador de Higia é a taça de onde bebe a serpente e está associado à saúde.

Internacionalmente, este símbolo é comummente associado à farmácia, mas nos cemitérios pode ser utilizado de uma forma mais ampla, significando saúde.

Recordo que os símbolos devem ser interpretados tendo em consideração os seus contextos, a época e os restantes símbolos representados. 
No contexto cemiterial, podemos generalizar que a presença de uma serpente enrolada numa taça ou num pau são motivos que simbolizam a saúde e a medicina e que uma vara com duas serpentes pode estar associado ao comércio ou à medicina, de acordo com o contexto e a época.

O caduceu num contexto onde se pretende que represente a Saúde, neste caso, a ausência de saúde - a morte -, considerando a sua inversão. Todos estes símbolos representam a morte: a tocha invertida que se apaga, a tesoura de Átropos que corta o fio da vida e a gadanha Cronos que ceifa a vida.