9.6.12

O Coração do Poeta

 A 1 de Fevereiro de 1851 morria Mary Shelley (Α:1797 - Ω:1851), a mãe de um dos mais célebres monstros da literatura: a criatura de Frankenstein, construída de pedaços de cadáveres. Entre os seus haveres, foi encontrado um belíssimo volume, encadernado em couro macio, contendo o poema Adonais, um dos mais brilhantes trabalhos do seu marido, o poeta romântico Percy Shelley (Α:1792 - Ω:1822). 
No interior do livro, enrolados num pedaço de seda, estavam os frágeis fragmentos do que restava coração do poeta, confirmando como verdade aquilo que tinha sido lenda...

As escolhas pouco ortodoxas dos Shelleys - ou melhor, de Percy Shelley e Mary Wollstonecraft Godwin - não os deixaram viver sossegados em Inglaterra, à semelhança do que aconteceu com o seu amigo George Gordon, Lord Byron (Α:1788 - Ω:1824). 
As posições políticas de Shelley, a sua apologia do ateísmo e o facto de viver maritalmente com Mary Godwin quando era casado com outra mulher, acabaram por os votar ao ostracismo, numa sociedade vitoriana completamente intolerante.
Casados desde 1816, depois da primeira mulher de Shelley ter-se suicidado por afogamento, os Shelley foram viver para Itália, dois anos depois, numa villa perto de Lerici.
A 1 de Julho de 1822, Shelley decidiu sair com o seu barco (o Ariel), planeando ir até Pisa, onde se encontraria com Lord Byron, com quem preparava uma nova revista. 
Depois de uma semana a viajar, Shelley e os companheiros decidiram ignorar os sinais de tempestade que escureciam o horizonte e fazer-se novamente ao mar, procurando regressar a Lerici quanto antes. 
Seria essa a última vez que seria vistos com vida.

Passaram-se dias e não havia qualquer notícia dos tripulantes do Ariel: este barco não foi encontrado e nenhum corpo dera ainda à costa. 
Mary e os filhos foram levados para Pisa pelo Capitão Trelawny - um amigo muito recente de Shelley, mas que se mostrou extremamente dedicado. Trelawny partiu para percorrer a costa italiana em busca dos cadáveres. 
Dez dias depois da tempestade, foram encontrados três corpos em diferentes locais e Trelawny apressou-se para tentar reconhecer os amigos.


Apesar de estarem já em avançado estado de decomposição, foi possível reconhecê-los pelas roupas e pertences.
Numa Itália que ainda não era unificada, estavam em vigor rigorosas regras de quarentena que impediam que corpos que fossem encontrados nas praias fossem levados para outros locais. Todos os corpos eram enterrados na areia, no local onde eram encontrados, cobertos por cal para acelerar o processo de decomposição.
Shelley e os companheiros não foram excepção. 
Cobertos de cal e enterrados nas praias, poderiam ter ficado perdidos para sempre se, mais uma vez, não fosse a dedicação de Trelawny.

Depois de negociar com as autoridades locais, o capitão conseguiu autorização para cremar os cadáveres e levar consigo as cinzas. Mandando construir um crematório portátil, em ferro, Trelawny começou por experimentar o processo com o cadáver de Edward Williams (um dos companheiros de viagem de Shelley). O processo demorou cerca de cinco horas e, no final, Lord Byron - que se havia juntado a Trelawny - pediu que, caso o destino dele fosse semelhante, o enterrassem onde ele caísse e o deixassem sossegado.

A 16 de Agosto de 1822, mais de um mês depois da fatídica tempestade que lhe roubou a vida, os restos mortais de Percy Shelley foram finalmente retirados das areias da praia e colocados na pira do crematório portátil. 
Labaredas intensas começaram a consumiram o cadáver do poeta, enquanto os seus amigos alimentavam as chamas com oferendas de vinho, sal e azeite.

De repente, segundo as memórias de Trelawny, o capitão viu o corpo do poeta estalar e romper, deixando a nu o seu coração, ainda intocado pelas chamas. 
Agindo somente por instinto, Trelawny estendeu a mão e, queimando-se, retirou o orgão ensanguentado do crematório, escondendo-o entre as suas vestes. Sem ser descoberto, viu o resto do corpo consumir-se até desaparecer, tornando-se cinzas.
Estas foram conservadas numa urna de nogueira e levadas para o cemitério Protestante de Roma, onde Mary pretendia que Shelley fosse enterrado junto do filho, mas a sobre-lotação do talhão levou as cinzas do poeta para outra campa, comprada por Trelawny e adornada com frases de Shakespeare.
Ao lado, uma misteriosa campa vazia. 

Quanto ao coração do poeta, Trelawny pretendia ficar com ele, mas acabou por dá-lo a Mary Shelley, que o conservou até morrer. 

Em 1880, a campa ao lado de Shelley foi finalmente ocupada: uma mulher inglesa transportou até Roma as cinzas de Trelawny, que quis ficar eternamente junto do poeta.

Em 1889, os fragmentos do coração de Shelley, transformados em pó pelos anos, foram colocados no mausoléu da família, com o corpo do filho que lhe sobreviveu.

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