Há um conjunto de cemitérios cuja visita é obrigatória para qualquer tafófilo.
Se ir a Paris sem visitar Père Lachaise é criminoso, não menos criminoso é ir a Londres e não visitar o cemitério de Highgate.
Highgate Oeste - Círculo do Líbano |
Highgate é tudo o que as descrições prometem: gigantesco, majestoso, clássico, envelhecido, cheio de monumentos de granito perdidos entre a vegetação quase selvagem, vagamente aparada para permitir acesso aos principais monumentos.
Todo o aficionado de cemitérios já ouviu descrever a Avenida Egípcia, as Catacumbas e o famoso Círculo do Líbano, com o seu enorme cedro no centro, mas posso garantir que ao vivo o impacto é outro.
Para quem visita o espaço é óbvio o motivo pelo qual Highgate é o mais famoso e importante dos sete cemitérios que rodeiam Londres, conhecidos por Sete Magníficos (mesmo sem possuírem a diversidade ou a qualidade superior de monumentos que pode ser encontrada em Kensal Green, por exemplo).
Londres inicia o século XIX com um problema grave de falta de espaço e condições deficientes de higiene para continuar a enterrar os seus mortos dentro da cidade.
Com um aumento da população para mais do dobro em apenas quarenta anos (de cerca de novecentos e sessenta mil em 1801 para cerca de dois milhões em 1841), resultante da necessidade de mão-de-obra criada pela Revolução Industrial, Londres deixa de ter capacidade para continuar a fazer enterros nos antigos cemitérios, dentro e em redor das igrejas.
Highgate Oeste - Avenida Egípcia |
Em 1836, o Parlamento decide ser necessária a construção de cemitérios extramuros - à semelhança do que tinha já acontecido em Paris e estava a acontecer um pouco por toda a Europa, pelos mesmo motivos - a norte, a sul e a este da cidade. Esses cemitérios seriam da responsabilidade de uma entidade privada, designada por London Cemetery Company.
A Norte de Londres, a empresa comprou os terrenos do lado Oeste da, agora famosa, Swain's Lane por três mil e quinhentas libras e entregou o projecto de jardinagem a David Ramsay que, seguindo a visão do arquitecto Stephen Geary, criou aquele que ainda é um dos mais bonitos cemitérios do mundo.
Highgate seria inaugurado em 1839, com o enterro de Elizabeth Jackson, a 26 de Maio. Alguns anos depois a London Cemetery Company viu-se na necessidade de estender o cemitério, considerando a procura que os primeiros vinte hectares tiveram. A única hipótese para estender Highgate eram os terrenos a este de Swain's Lane; em 1854, Highgate Este abria as portas, passando assim a existir também um Highgate Oeste.
Highgate Oeste - Catacumbas no Círculo do Líbano |
O cemitério, apesar de ser único, viu-se atravessado por uma estrada ou seja, uma linha de terreno não consagrado.
Highgate Este |
Este facto pode não parecer ter importância efectiva, mas se pensarmos que as capelas mortuárias existiam apenas em Highgate Oeste (duas capelas, uma para anglicanos e outra para dissidentes), isso significava que, depois de terem sido realizadas as últimas cerimónias, os esquifes tinham de ser retirados de terreno consagrado e atravessar a estrada (terreno não consagrado) antes de voltar a entrar em terreno consagrado. Assim, teve de ser encontrada uma solução alternativa que permitisse manter o defunto em terreno consagrado, mas levando-o de Highgate Oeste para Highgate Este - e encontrou-se essa solução com uma brilhante construção de engenharia: foi criado um elevador hidráulico na capela sul que fazia descer o caixão para uma câmara subterrânea que ligava a um pequeno túnel debaixo da estrada, com uma saída já dentro do lado Este do cemitério.
Como curiosidade, na minha visita a Highgate Oeste, o guia era um engenheiro reformado, muito atencioso e que se dedicava a estudar mecanismos de engenharia utilizados na industria funerárias na época vitoriana, pelo que tive oportunidade de perguntar pelo túnel: fui informada que está parcialmente soterrado e por isso intransitável. Aparentemente, as peças do mecanismo hidráulico ainda estão no local.
Existem várias personalidades famosas enterradas no lado Este, mas a mais conhecida é talvez Karl Marx que, com um busto gigantesco, junto do percurso principal do cemitério, é impossível não ser visto.
Existem várias outras personalidades e monumentos dignos de destaque, mas refiro apenas outro bastante conhecido (ainda que ligeiramente mais difícil de encontrar): o piano aberto de Harry Thornton, um pianista que morreu de gripe em 1918, depois de ter passado a Primeira Grande Guerra a animar as tropas com a sua arte (infeliz e incompreensivelmente, a tampa do piano está ausente: descobri num livro que terá sido roubada).
Highgate Este |
Já do lado Oeste existem vários monumentos conhecidos, especialmente com animais, como o leão adormecido no topo da tumba de George Wombwell (dono de um espectáculo itinerante com animais, entre os quais se incluía o leão Nero) ou o cão na campa de Thomas Sayers (um famoso lutador da época vitoriana). Também de destaque é o mausoléu de Julian Beer, com um gigantismo impressionante, construído perto do Círculo do Líbano e com uma das mais belas esculturas de Highgate no seu interior.
O desenho de Highgate Oeste obrigava a um trabalho de jardinagem cuidado e constante, sendo que a baixa da rentabilidade de um espaço já cheio e que não permitia novas vendas, acabou por limitar a manutenção e a vegetação começou a tomar conta do cemitério. Na sequência de vandalismo durante a primeira metade da década de setenta do século XX, Highgate Oeste foi fechado em 1975 e manteve-se assim durante décadas, entregue a si mesmo e aos vândalos que saltavam os muros e corriam entre as campas, no escuro.
Existem até histórias e rumores sobre a existência de um Vampiro no cemitério de Highgate, mas deixaremos esse post para alturas do Halloween.
Entretanto, uma empresa de construção viu no espaço abandonado a possibilidade de criar um condomínio, mas a população local e muitos admiradores de Highgate e conhecedores da sua importância, reuniram-se e criaram uma associação de Amigos de Highgate que adquiriu o direito ao cemitério em 1981 com o objectivo de preservar, restaurar e manter o espaço, os monumentos e a flora.
Highgate Oeste |
Assim, o cemitério de Highgate tem vindo a ser recuperado pela associação, graças a donativos e, especialmente, ao valor dos bilhetes para as visitas guiadas. Devido a estar ainda em recuperação e o cemitério ter vários locais perigosos, com campas abatidas, trilhos escondidos ou zonas escorregadias, as visitas a Highgate Oeste são sempre acompanhadas por guia. O mesmo não se passa com Highgate Este (a entrada é igualmente paga, mas o cemitério é de visita livre).
Para visitar o cemitério de Highgate Oeste é necessário marcar a visita com antecedência; as visitas estão normalmente cheias (visitei Highgate a meio de Março, uma altura turisticamente morta e as visitas estavam completas).
Tive a sorte de ter um ambiente fantástico no dia da minha visita: nevou parte do percurso e depois o sol apareceu, criando sombras e iluminando os brilhantes flocos de neve no chão.
Para além disso, ainda que não fizesse parte do percurso da visita, o guia era extremamente acessível e acabou por nos mostrar o talhão da família Rossetti, onde foi enterrada Lizzie Siddal (esposa do pintor e poeta Pré-Raphaelita Dante Gabriel Rossetti), assim como toda a família Rossetti, com excepção do próprio Dante Gabriel Rossetti que foi enterrado, a seu pedido, em Birchington, no Kent.
Highgate Oeste - Talhão da Família Rossetti |
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