Ao visitar um cemitério romântico, nas zonas mais antigas, onde se erguem os jazigos-capela e as sepulturas perpétuas, é comum encontrar curiosas figuras talhadas na pedra, sozinhas ou adornando epitáfios: flores, animais, instrumentos de trabalho, letras gregas, objectos do dia-a-dia, figuras humanas, símbolos de ordens.
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Cemitério dos Prazeres, Lisboa, Portugal |
Quando tentamos perceber o seu significado dentro do espaço cemiterial, transparece que a escolha não foi aleatória, ainda que alguns dos donos de obra possam ter escolhido a decoração do seu jazigo a partir de catálogos ou pedindo para copiar algo que viram numa das suas visitas de domingo ao cemitério local.
Identificar e decifrar essas figuras ajuda-nos a saber mais sobre quem é a pessoa que se encontra enterrada no local, a forma como ela se via ou era vista pelos outros, aquilo de que mais gostava ou mais valorizada em vida.
Algumas das figuras não nos levam a interpretações complicadas e a recorrer dos compêndios e almaços antigos, por conseguirmos reconhecer o símbolo apresentado, por ele ainda fazer parte da nossa actualidade. E porque, por vezes, uma rosa é, realmente, apenas uma flor.
Um dos conjuntos de símbolos que parecem fáceis de identificar e decifrar são os símbolos associados à medicina e saúde. Estamos habituados a vê-los pintados em ambulâncias, representados nos placards luminosos das farmácias, nos logótipos de serviços de saúde. São normalmente compostos por serpentes enroladas em varas, árvores, taças, lamparinas de azeite.
Parece bastante claro e simples, mas porquê as variações?
Acontece que, efectivamente, estamos a falar de símbolos diferentes.
Os que chegaram até nós mantendo o significado original são o Bastão de Asclépio e a Taça de Higia.
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Hermes representando o Comércio - Cemitério dos Prazeres, Lisboa, Portugal |
Pelo meio, aparece o Bastão de Hermes, normalmente designado de Caduceu, que inicialmente não estava associado à medicina e, por esse motivo causa alguma confusão no contexto cemiterial, onde aparece muitas vezes como representação do comércio.
A sua associação formal à medicina surge no início do século XX, no corpo médico do exército dos Estados Unidos, que o adoptou como símbolo, ainda que existam algumas correntes que a colocam vários séculos antes, como extensão da associação de Hermes à Alquimia.
Este erro surge da utilização do caduceu nos exércitos romanos para identificar os mensageiros que, transportando um estandarte com este símbolo tinham salvo-conduto para se deslocarem no campo de batalha sem serem alvos de violência. Talvez fosse esse o objectivo inicial da selecção deste símbolo para identificar os elementos do corpo médico do exército, mas a consequência foi este ficar associado à medicina.
Podemos descrever estes símbolos, simplificadamente, da seguinte forma:
- O Bastão de Asclépio é uma vara de madeira onde se enrola uma - e apenas uma - serpente.
- A Taça de Higia é uma taça ou um cálice, no pé da qual se enrola uma serpente, que parece beber da taça.
- O Caduceu é um bastão de ouro com duas serpentes enroladas, uma de cada lado; no topo do bastão aparece um par de asas e, por vezes, também o capacete de Hermes.
Para distinguir os dois bastões basta ter em atenção o número de serpentes: uma é Asclépio, duas é Hermes.
Conforme referi, Hermes não estava associado à medicina na antiguidade clássica, ao contrário de Asclépio e Higia.
Hermes era o mensageiro de Zeus e dos deuses nos Infernos: Hades e Perséfone. Era considerado o patrono do comércio, dos ladrões, dos viajantes e dos mensageiros.
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Caduceu /Bastão de Hermes - Cemitério do Alto de São João, Lisboa, Portugal |
O caduceu era, originalmente, um cajado de ouro usado por Apolo enquanto pastoreava gado.
Conta a lenda que Hermes recebeu de Apolo esse cajado em troca de um instrumento musical: numa versão, diz-se que Hermes criou uma lira a partir de uma carapaça de tartaruga e tripas de uns bois que sacrificará aos deuses e que foi esse o instrumento trocado com Apolo; noutra versão, Apolo já teria obtido a lira em troca de um rebanho e dessa vez, para obter a flauta inventada por Hermes, teve de dar em troca o seu cajado.
Quando recebeu o cajado de Apolo este era apenas uma vara de ouro, sem as serpentes. Depois de receber o cajado, Hermes dirigiu-se a Arcádia, quando chegou encontrou duas serpentes lutavam e se mordiam. Tentando separá-las com o cajado, elas enrolaram-se neste e pararam a violência, mantendo-se em equilíbrio.
De notar ainda a ligação de Hermes ao mundo dos mortos: este era conhecido como "Acompanhante de Almas" - deus psicopompo - por ser responsável por levar as almas aos Infernos, mas até hoje ainda não encontrei essa vertente representada nos cemitérios, onde a simbologia de Hermes sempre aparece associada ao comércio ou (em jazigos mais recentes) à medicina.
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Bastão de Asclépio - Campo Verano, Roma, Itália |
Asclépio, filho do deus Apolo - o mesmo que deu o caduceu a Hermes - foi em pequeno entregue pelo pai ao centauro Quíron, que lhe ensinou as artes da medicina. Asclépio, para além de ter aprendido rapidamente e apresentar grande habilidade na cura dos doentes, possuía ainda a capacidade de ressuscitar os mortos, usando para isso o sangue das veias do braço direito de uma górgona, que lhe fora dado por Atenas.
Foi por esta capacidade de ressuscitar os mortos que Zeus o matou, receando o impacto que esta façanha poderia ter na ordem do mundo. Depois de morto, Asclépio ascendeu aos céus sob a forma da constelação Serpentário: um homem segurando uma serpente.
O seu símbolo identificador é um pau onde se enrola uma serpente, símbolo esse que representa a medicina.
São atribuídas a Asclépio várias filhas, todas elas associadas à arte da medicina nas suas diferentes vertentes, sendo uma dela Higia.
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Taça de Higia - Cemitério dos Prazeres, Lisboa, Portugal |
Higia é associada à saúde e representada segurando uma taça de onde bebe uma serpente.
Reza a lenda que, quando Asclépio foi morto por Zeus, as serpentes que viviam e guardavam as fontes de águas medicinais abandonaram-nas e refugiram-se nos templos de Asclépio, onde ficavam imóveis no chão, em sofrimento.
Higia, por afecto ao pai, cuidava dessas serpentes enlutadas, oferecendo-lhes de beber a partir de uma taça.
É do nome de Higia que surge a palavra higiene, considerada uma das componentes essenciais à manutenção da saúde.
O símbolo identificador de Higia é a taça de onde bebe a serpente e está associado à saúde.
Internacionalmente, este símbolo é comummente associado à farmácia, mas nos cemitérios pode ser utilizado de uma forma mais ampla, significando saúde.
Recordo que os símbolos devem ser interpretados tendo em consideração os seus contextos, a época e os restantes símbolos representados.
No contexto cemiterial, podemos generalizar que a presença de uma serpente enrolada numa taça ou num pau são motivos que simbolizam a saúde e a medicina e que uma vara com duas serpentes pode estar associado ao comércio ou à medicina, de acordo com o contexto e a época.
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O caduceu num contexto onde se pretende que represente a Saúde, neste caso, a ausência de saúde - a morte -, considerando a sua inversão. Todos estes símbolos representam a morte: a tocha invertida que se apaga, a tesoura de Átropos que corta o fio da vida e a gadanha Cronos que ceifa a vida.
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