«Relva e ervas ruins cresciam em abundância por todo o cemitério, cobrindo completamente as velhas sepulturas. Não havia ali uma pedra tumular. Sobre cada sepultura havia uma tabuleta carcomida, com a parte de cima arredondada mais ou menos tombada e sem ter a que se apoiar. Noutro tempo, em cada uma delas, tinha sido pintado o nome da pessoa a quem era consagrada, mas, ainda mesmo que houvesse luz, ninguém conseguiria lê-las. (...)
Na escuridão distinguiam-se a custo uns vultos vagos, que se aproximavam balouçando uma lanterna acesa, cuja luz punha no chão inúmeras manchas. (...)
O doutor pôs a lanterna à cabeceira da sepultura e foi sentar-se encostado ao tronco de um dos ulmeiros (...)
Durante algum tempo não se ouviu nenhum ruído além do que faziam as enxadas a abrir a terra, e que era muito monótono. Finalmente, uma delas tocou no caixão, com um ruído oco de madeira; em pouco minutos os homens içaram-no para fora da cova. Tiraram o corpo e deixaram-no cair rudemente no chão. A Lua apareceu entre as nuvens e iluminou o rosto pálido. Estava pronta a padiola. Colocaram-lhe o corpo em cima, taparam-no com um cobertor e ataram-no com uma corda.»
Mark Twain, As Aventuras de Tom Sawyer
No excerto acima, Mark Twain descreve um acontecimento comum no final do século XVIII: o roubo de um corpo, em nome da ciência. Os avanços científicos na área da medicina tornavam a dissecação de corpos humanos numa necessidade imperativa, mas as regras religiosas dificultavam a disponibilização de cadáveres às universidades.
Nasceram, assim, os ladrões de corpos que a troco de dinheiro invadiam cemitérios à noite, desenterrando os mortos mais recentes para vendê-los a estudantes de medicina, que evitavam fazer perguntas.
O horror da morte de um familiar era seguido pela angústia da possibilidade do corpo não ter direito ao descanso eterno e acabar na marquesa de um anatomista.
Foram criados mecanismos de defesa para os mortos, que passaram pela construção de mausoléus, gaiolas de metal ou caixões explosivos. Em 1816 foi inventado um sistema, baseado num conjunto de grades de ferro e cadeados que, colocado rente ao chão, sobre as campas, impedia os ladrões de roubar os corpos.
Em alguns casos, as grelhas eram retiradas, e reutilizadas, logo que o corpo se encontrava suficientemente decomposto para já não ser cobiçado pelos estudantes; noutros casos, iam ficando - e ainda hoje podem ser encontrados em cemitérios antigos.
Esse sistema de grelhas ganhou o nome de mort safe.
Há um belo romance que trata precisamente deste assunto: A obra ao negro, de Marguerite Yourcenar. O pobre Zenão, cujo único objectivo era o de perceber o funcionamento do coração, via-se obrigado a roubar corpos dos cemitérios enquanto era perseguido pela inquisição.
ResponderEliminarJá agora: acabei de me aperceber que este blog nasceu hoje, e que este é o primeiro post. Parabéns e votos de muitos sucessos!
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