1.11.12

Pan de Muerto


No dia 2 de Novembro, o México reúne-se para celebrar a versão mexicana do nosso Dia dos Fiéis Defuntos, o Día de los Muertos enchendo os cemitérios com família, flores, comida e bebida.

As celebrações começam normalmente na véspera, ainda durante o Dia de Todos os Santos, arrastando-se pela madrugada. As campas são limpas, enfeitadas e, por vezes, é construido um altar com oferendas em honra dos familiares e amigos já falecidos.

Os bolos e pães que são cozinhados nesta altura incluem as famosas caveiras de açúcar colorido, alguns com o nome dos falecidos escrito na cobertura, e o pan de muerto, um pão adocicado e aromatizado com ervas.


Receita de Pan de Muerto

Ingredientes:
  • 1/2 caneca de manteiga sem sal;
  • 1/2 caneca de leite;
  • 1/2 caneca de água;
  • 5 canecas de farinha;
  • 2 pacotes de fermento em pó;
  • 1 colher de chá de sal;
  • 1 colher de sopa de sementes de anis;
  • 1 caneca de açúcar;
  • 4 ovos;
  • 1/3 caneca de sumo de laranja;
  • 2 colheres de sopa de raspa de laranja;

Modo de Fazer:
  1. Ao lume, aquecer a manteiga, com o leite e a água, até esta derreter.
  2. Numa tigela, colocar 1 e 1/2 canecas de farinha, o fermento, o sal, as sementes de anis e 1/2 caneca de açúcar. Misturar tudo a adicionar a mistura do leite com a manteiga. Mexer até ficar homogéneo e, em seguida, adicionar os ovos e mais 1 caneca de farinha, voltando a mexer bem. Pouco a pouco, adicionar o resto da farinha, até a massa se descolar das paredes da tigela.
  3. Bater a passar por 10 minutos numa tábua enfarinhada. Untar levemente uma taça grande, colocando a massa no fundo, fechar a taça com película aderente e deixar repousar por cerca de 1 hora e meia num local quente, para a massa crescer. Bater um pouco a massa, para depois a moldar em forma de osso ou caveiras. Deixar repousar mais uma hora num local quente para a massa crescer.
  4. Aquecer o forno a 175º. Colocar os pães no forno durante 40 minutos ou até que estes fiquem dourados.
  5. Enquanto o pão coze, misturar ao lume, o sumo e a raspa de laranja com o açúcar. Deixar ferver e manter ao lume por 2 minutos. Retirar do lume.
  6. Quando os pães estiverem cozidos pincelá-los ainda quentes com este preparado.

Enjoy!


Um agradecimento especial a Charles Sangnoir, que cozinhou e nos deliciou com o fantástico Pan de Muerto que podem ver na fotografia.

23.10.12

Igreja de Santa Elżbiety

Todos os guias de viagem que descrevem as atracções turísticas da cidade polaca de Wrocław falam de dois pitorescos edifícios antigos, unidos por um arco barroco, datado de 1728, a que chamam carinhosamente de "Hansel e Gretel", inspirados pelo célebre conto dos Irmãos Grimm. 
Na realidade, apesar de ter ganho a alcunha por considerarem que esse arco recorda um casal de mãos dadas, ele tem muito pouco de romântico. 
Ao lado dos prédios - agora isolados - continuava o casario ou talvez um muro, cercando e fechando o acesso ao átrio da igreja de Santa Elżbiety que, como em todas as igrejas medievais, servia de cemitério.
No topo do arco, num pequeno medalhão erguido por dois anjinhos pode ler-se:

 «Mors Ianua Vitae»
 
"A Morte é a Porta da Vida", num mórbido convite a deixar o buliço da vida da praça principal, do mercado e, passando o arco, entrar no território da Morte.
Das valas comuns medievais, que certamente encheram o átrio, aparentemente nada resta, mas as paredes exteriores da igreja, estão ainda decoradas com placas funerárias e inscrições, mandadas colocar pelos cidadãos mais ricos que, mesmo depois de mortos, queriam ser recordados.
Maioritariamente as placas apresentam apenas epitáfios ornamentados, mas existem placas onde se podem encontrar também brasões ou escudos de armas. 
Existem ainda representações de cenas sagradas, retiradas da Bíblia ou de vidas de santos.
Numa das placas, o campanário partido da torre cai em direcção à terra, transportado por anjos, o que poderá indiciar que a torre terá ruído, mas que milagrosamente não terão existido vítimas. A ser verdade este será um painel que celebra esse milagre e a imagem é a garantia que seria entendido por todos, sem dificuldades e sem a obrigação de fazer a leitura do texto.
 
Quase todas as placas estão protegidas por um pequeno telheiro.
Estes telheiros eram muito comuns e serviam essencialmente para que os restos mortais do falecido estivessem "sob telha", ou seja, anulava o facto de estarem do lado exterior da igreja, pois simulavam o interior. Mesmo quando no século XV começou a ser mais usual colocar cruzes entre as campas dos átrios das igrejas, estas tinham pequenos telhados assentes nas pontas, com este mesmo objectivo. 
Este tipo de cruzes é ainda muito comum nos cemitérios da Europa de Leste.

A estrutura gótica da igreja de Santa Elżbiety data originalmente do século XIV, mas já existia uma igreja no mesmo sítio desde o século XII.
O belíssimo edifício é um dos mais altos da cidade, com a sua torre de noventa metros (anteriormente, cento e vinte e oito), que oferece uma magnifica vista sobre a Cidade Velha de Wrocław, especialmente a praça principal - Rynek -, onde durante séculos funcionou o mercado.
 A igreja de tijolo vermelho, com o seu telhado malhado em vermelho e verde, teve vários acidentes ao longo dos anos.
Exemplo disso são a intensa tempestade de granizo do século XVI que conseguiu destruir parte da igreja, incluindo os gigantescos vitrais do lado norte, os danos causados pela Segunda Guerra Mundial ou o misterioso incêndio em 1976 que fez inúmeros estragos no interior e que, inclusivamente, destruiu o órgão da igreja, que era um dos seus ex-libris.
Para além das placas funerárias no exterior do edifício, é ainda possível ver várias placas no interior e as capelas funerárias laterais, reservadas para a inumação dos elementos da família que as financiavam e mantinham. Ainda guardam todo o esplendor; algumas sendo mesmo espaços gradeados e inacessíveis ao público que visita a igreja.
É fantástico como, apesar de todos os acidentes que a destruíram parcialmente, a igreja conseguiu trazer até nós estes elementos medievais que permitem perceber como eram os hábitos funerários de tantos séculos atrás.



2.10.12

Crematório do Alto de São João

O nosso primeiro - e durante muitos anos único - crematório é o forno crematório do cemitério do Alto de São João.
Ainda em utilização, a história deste crematório mistura-se com a história do nosso país e é, mais uma vez, um excelente exemplo de como as práticas funerárias de uma sociedade conseguem ser uma fotografia quase perfeita desta e das crenças e limitações de quem nela vive.

A partir dos anos 70 do século XIX várias vozes se levantaram em defensa da criação de um forno crematório em território nacional.
Os argumentos usados no início do século para fundamentar a criação de cemitérios e descontinuar os enterramentos no interior das igrejas foram então reaproveitados para defender a cremação em detrimento da inumação.

Não deixa de ser curioso que apenas em 1912 é que, finalmente, foi aprovada a construção do crematório no cemitério do Alto de São João.
Considerando que a Igreja Católica é contra a cremação, naturalmente apenas depois da implantação da República, com os ventos ateístas trazidos pelas mãos de Afonso Costa, foi possível ter um crematório em Portugal.

Apesar disso, somente em 1925 o crematório entrou em funcionamento, depois de um vereador adepto da cremação ter procedido à aquisição do forno na Alemanha; apesar disso, segundo as estatísticas, os números de utilização foram muito reduzidos. Entre 25 e 36 foram apenas cremados 22 corpos e em 1936 o crematório deixou de funcionar.
No livro Cemitérios, Jazigos e Sepulturas de Vítor Manuel Lopes Dias é referido apenas que o crematório «não está presentemente [1963] em condições de funcionar.» sem mais explicações.
É de destacar que este trabalho foi publicado quando o Estado Novo ainda fazia censura de livros e textos, pelo que é preciso ter isso em conta quando se considera a falta de informação neste ponto.

É preciso recordar que a Igreja Católica era militantemente contra a cremação e o Estado Novo, nascido em 1933 com a instauração da Constituição de 32, estava completamente alinhado com a Igreja Católica e, por isso, não é de estranhar que o crematório do Alto de São João tenha sido desactivado, até ser recuperado em 1985, em parte por pressão da crescente comunidade Hindu.

 Actualmente, em Lisboa, existem três fornos crematórios, uma vez que ao do Alto de São João se juntaram mais dois no cemitério dos Olivais; para além destes, também existe um no cemitério do Prado do Repouso, no Porto, e outro em Ferreira do Alentejo, de construção particular (ainda que gerido pela câmara municipal).

Em breve uma pequena adenda com informação estatística sobre o fenómeno da cremação.


5.9.12

Simbologia: Alfa e Ómega

Encontrar letras soltas e acrónimos nos cemitérios é bastante comum. 
Desde o tradicional PNAV - que significa "Padre Nosso Ave Maria" e que pretende ser um pedido, a quem passa pela lápide, para rezar um Padre Nosso e uma Ave Maria pela alma do defunto - até ao INRI - do latim Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum ou seja "Jesus de Nazaré Rei dos Judeus" - e passando claro, pelas letras gregas Α (alfa) e Ω (ómega).

O mais óbvio, válido para qualquer contexto, é o facto destes símbolos representarem a primeira e última letras do alfabeto grego e por isso serem continuamente associadas ao princípio (alfa) e ao fim (ómega). Qual o princípio e qual o fim já depende, efectivamente, do contexto em que eles são usados.

Uma das mais famosas utilizações é, sem dúvida no Apocalipse, ou Livro das Revelações (21:6), quando Jesus se senta no trono e exclama:
«Está feito! Eu sou o Alfa e o Ómega, o principio e o fim.»
Há também uma associação comum do Alfa à Luz e do Ómega às Trevas, mas num contexto cemiterial, as letras gregas são usadas muitas vezes junto das datas de nascimento e morte: Α (alfa) para o início da vida, o nascimento e Ω (ómega) para a morte, representando o fim da vida.

É ainda, relativamente, comum ver as duas letras sobrepostas ou entrelaçadas e em alguns casos é ainda acrescentada a letra Μ (mu), a décima segunda letra do alfabeto grego que, estando a meio deste, é por vezes usada para para representar continuidade: aquilo que está entre o Α (alfa) e Ω (ómega) ou seja, neste nosso contexto, a vida.

2.9.12

Convento de Santa Clara-a-Velha

Em Coimbra, nas margens do Mondego, fica o mosteiro de Santa Clara-a-Velha, fundado no século XIII e abandonado no século XVII, depois de anos de inundações. As águas desse rio invadiram definitivamente o espaço e, durante séculos, submergiram parcialmente o mosteiro até à sua recuperação no final do século XX.
As águas, lamas e lodos que tomaram conta do mosteiro serviram também de um estranho conservante.
Uma visita ao complexo, completamente recuperado e que integra um interessante museu, com objectos encontrados nas escavações e a contextualização desses objectos no dia-a-dia do mosteiro, mostra-nos o uso de coloridos azulejos, o recorte delicado de colunas e, especialmente, pedras decoradas que cobrem os locais de inumação das freiras que o habitavam. 
Mostra-nos ainda alguns dos costumes associados às inumações na idade média.

Sendo religiosas, as mulheres eram enterradas no interior do mosteiro ou em redor do claustro. 
Nas pedras tumulares, não tendo sido pisadas durante trezentos anos, as marcas são ainda visíveis e muito interessantes: cruzes, cordas com nós (imitando as que as freiras usavam à cintura), desenhos geométricos, nomes e datas, etc.
No exterior, no pequeno corredor entre o edifício principal e o claustro estão várias dessas pedras tumulares, muito bem preservadas.
Os locais de inumação variavam conforme a importância do morto, especialmente neste contexto de enterramentos apud ecclesiam.
Quanto mais próximo do altar, mais importante era considerada a pessoa. Por isso é que no interior do edifício principal, junto da porta que dá acesso ao claustro, é que está enterrada uma das mais importantes abadessas do mosteiro.
No decorrer dos trabalhos arqueológicos, foram encontradas cerca de 70 religiosas enterradas na zona do cadeiral e nas naves laterais; estes enterramentos terão ocorrido depois das primeiras cheias, quando o coro passou para a parte superior do edifício.
 Para além destes casos pode ainda encontrar-se um interessante sepulcro num nicho, deixado no piso inferior, que terá estado submerso durante todos estes séculos.

No entanto, as mais ilustres ossadas a repousar no convento de Santa Clara-a-Velha são, sem dúvida, as da Rainha Santa Isabel, esposa do rei D. Dinis, apesar de terem sido levadas para o convento de Santa Clara-a-Nova quando as clarissas abandonaram o local. É ainda possível ver o arco triunfal, em pedra de Ançã ricamente decorada, onde estaria o sepulcro da rainha.
Tendo morrido em Estremoz e sendo seu desejo ser sepultada no mosteiro, em Coimbra, antevia-se o pior durante a demorada viagem naquele Verão especialmente quente.
Quando o ataúde onde viajavam os restos mortais da rainha começou a apresentar rachas e fendas, das quais se vertia um liquido pastoso, foi com surpresa que, ao invés de sentirem o cheiro putrefacto da decomposição de um cadáver, os súbditos que acompanhavam a procissão fúnebre relataram sentir um suave cheiro a flores e plantas.
Durante anos, o sepulcro da rainha ficou no interior da igreja, mas, com as cheias que já referimos, ele também foi transportado para o andar superior. 
Acorriam multidões ao mosteiro para rezar à rainha, que, ainda em vida, foi considerada santa pelo povo. Apesar de ter morrido em 1336, a beatificação e canonização ocorreram em 1515 e 1625, respectivamente.

Com o abandono do mosteiro, as águas do Mondego invadiram o local, que esteve esquecido e semi-submerso até 1995, ano em que começaram os trabalhos de recuperação.

Como nota final, gostaria de deixar uma palavra para todos aqueles que trabalham ou trabalharam neste projecto para resgatar o convento de Santa Clara-a-Velha das águas do Mondego. 
É uma obra fantástica, tendo resultado num complexo muito rico e interessante, cheio de informação. Todos eles estão de parabéns.

12.8.12

Altar das Caveirinhas

Em território nacional existem várias capelas dos ossos, concentradas no Alentejo e no Algarve. 
Já aqui mencionámos algumas, como a Capela dos Ossos de Évora - a mais famosa capela dos ossos nacional, sendo ainda a de maiores dimensões - ou a capelinha de Alcantarilha.
Caveira manchada de fumo de vela    
 Capela de Alcantarilha





Para além das existentes abaixo do Tejo, há ainda registos que referem a existência de uma capela dos ossos a norte desse rio, na cidade de Coimbra, referenciada como sendo a mais antiga do nosso país, destruída no século XIX para dar lugar a uma nova estrada. 
Talvez não tivesse sido esse o único motivo que levou à destruição dessa capela, uma vez que estes locais repletos de ossadas, tão em voga nos séculos anteriores, foram sendo o palco principal de cultos das alminhas, em parceria com os painéis de azulejos ilustrados com anjos ou imagens de Morte ou da Ascensão aos Céus. 
Velas eram deixadas junto dos restos mortais dos antepassados, num misto entre a promessa, a prece e o pedido. Rezando para que os familiares e amigos conseguissem encontrar a paz ou, caso já o tivessem feito, intercedessem pelos vivos junto de entidades superiores para a concessão de favores e auxílio. 
O Culto das Alminhas do Purgatório teve uma expressão muito grande em Portugal, bastante superior a outros países católicos com comportamentos e culturas semelhantes à nossa.

Até há pouco tempo, esta era a única capela dos ossos a norte do Tejo de que tinha conhecimento. 
As principais fontes sobre esta temática apenas mencionavam a capela de Coimbra, no entanto, ainda que não fosse uma capela, existiu mais um destes Memento Mori a norte do Tejo; mais que isso, a norte do Douro.
Altar das Caveirinhas, circa 1909
Na antiga Igreja da Misericórdia da Póvoa do Varzim existiu um altar constituído por dezenas de pequenas caixas de madeira, empilhadas, contendo caveiras.

As caixas de madeira tinham molduras na frente, com desenhos simples e a identificação e datação dos restos mortais.
Em 1909 - um ano depois do regicídio e um ano antes da implantação da República - o altar, conhecido como Altar das Caveirinhas, foi desmantelado. Esse desmantelamento ocorreu num contexto de construção de uma nova igreja, em substituição da antiga.
Na realidade, devemos ter ainda em atenção outros factores, como a pressão exercida pela classe intelectual, sob a qual a necessidade de ruptura com os antigos costumes e crenças, associada à secularização da sociedade que seria advogada e seguida durante a Primeira República, teve muito peso na decisão; assim como a pressão dos elementos do clero, incomodados desde há anos pela conotação pagã associada ao culto das alminhas.
Talvez estes factores tenham também tido influência na destruição da capela de Coimbra, ainda que a justificação oficial seja a construção de uma nova estrada.
Historiadores e etnólogos - que, naturalmente, se opunham ao desmantelamento do altar - conseguiram realizar algumas fotografias e registos, antes da maioria dos restos mortais serem levados para o cemitério de Póvoa do Varzim.
Conseguiu-se ainda preservar algumas das caveiras - poucas - numa versão muito mais modesta deste altar, na chamada Casa das Caveirinhas, uma pequena e discreta capelinha junto da nova igreja. 
Também esta acabou por ser fechada nos anos 90 do século XX, acabado assim com os últimos vestígios do altar.
Um dos aspectos mais interessantes desta peça é a sua originalidade, não existindo - até ver - nada semelhante no nosso país.
Imagem do ossário de St. Hilaire, Marville, França
No entanto, como pode ser observado pela imagem, existe uma semelhança bastante grande entre as caixas do Altar das Caveirinhas de Póvoa do Varzim e as do ossário de St. Hilaire de Marville, em França. 
Em ambos os locais, a moldura frontal das caixas é ornamentada e contém texto que serve para identificar e datar os restos mortais nelas preservados.
Desconheço se teria existido algum contacto entre os residentes destes dois locais que possa ter servido de influência ou se estas caixinhas seriam comummente utilizadas para esta finalidade, apesar de tão poucas terem chegado até nós. Ainda assim, é de notar que existiu um surto de emigração das gentes da Póvoa do Varzim durante o século XIX, sendo que o dinheiro enviado por esses emigrantes permitiu a renovação de igrejas e retábulos durante a segunda metade do século XIX.
As caixinhas de caixinhas de St. Hilaire contêm caveiras de cidadãos que morreram entre 1780 e 1860. Algumas das datas que consegui perceber através de fotografias do Altar das Caveirinhas colocam as caveiras de Póvoa do Varzim como pertencentes a cidadãos que morreram nas décadas de 40 e 50 do século XIX.
Teriam alguns desses emigrantes partido para perto de Marville e pedido a construção deste altar, de acordo com o que vira por terras de França?

É ainda de realçar que, quer na Póvoa do Varzim, quer em St. Hilaire, as caveiras estão claramente identificadas.
Altar na Casa das Caveirinhas, circa 1996
E é esta uma das grande diferenças entre estas caixinhas de caveiras e os ossários e capelas dos ossos: a identificação versus o anonimato.
As capelas de ossos e ossários são constituídos por ossadas anónimas, que permitem - ainda hoje - que os vivos que as visitavam se sintam identificados com os restos mortais espalhados pelas paredes. 
Estas caveiras em caixinhas estão individualizadas, nomeadas, representam pessoas concretas, sendo que assim são sempre vistas como "outros" pelos visitantes: «esta era... esta foi...»
Será assim correcto ver nestes altares os mesmos objectivos da construções anónimas, que os precederam? 
Capela dos Ossos, Évora (detalhe)
Se considerarmos as datas de construção, podemos pensar nestas ossadas não anónimas como a evolução natural das capelas de ossadas anónimas, assim como estas são uma evolução dos carneiros e ossários primitivos?
Se pensarmos no contexto histórico, o cemitério velho da Póvoa do Varzim data de 1866, ou seja, é posterior à datação de morte das caveiras.
Seria interessante perceber a amplitude do intervalo de tempo de recolha das caveiras da Póvoa e compará-lo com o intervalo de St. Hilaire.
Serão estas caixinhas uma versão mais modesta das caixas de reliquias de santos, numa versão para o homem comum? A verdade é que, à semelhança do que era feito durante a Idade Média com as relíquias de santos, as caveiras destas gentes da Póvoa foram identificadas, guardadas em caixas quais relicários, colocadas num altar dentro da igreja e veneradas com velas e orações.

Sem dúvida que, caso tivesse sido preservado à semelhança das restantes Capelas dos Ossos nacionais, este Altar das Caveirinhas faria as delícias de historiadores, etnólogos e tafófilos, nacionais e estrangeiros.


Nota Final: Os meus agradecimentos à Dr.ª Deolinda Carneiro, Directora do Museu Municipal de Etnografia e História da Póvoa de Varzim, pela cedência das imagens do Altar e da Casa das Caveirinhas.

28.7.12

D. Inês de Castro por Byatt


"...Pedro of Portugal's rapt and bizarre declaration of love, in 1356, for the embalmed corpse of his murdered wife, Inez de Castro, who swayed beside him on his travels, leather-brown and skeletal, crowned with lace and gold circlet, hung about with chains of diamonds and pearls, her bone-fingers fantastically ringed." 

do romance Possession de A. S. Byatt.

23.7.12

Famadihana - A Dança dos Mortos

A tribo malagaxe Merina, que ocupa a zona central da ilha de Madagáscar, habita em simples cabanas de palha e folhas de palmeira, mas os seus mortos são depositados em elaboradas tumbas de pedra, normalmente escavadas nas faces das montanhas.

Os cadáveres são conservados em nichos, envoltos em mortalhas brancas; por vezes, ao lado dos corpos amortalhados, os familiares deixam pequenos rádios de pilhas, que ligam antes de selar os túmulos.

Alguns anos depois (entre sete a dez), celebra-se a Famadihana: celebração colectiva em que os descendentes dos falecidos reabrem as criptas e remortalham os restos mortais dos antepassados, muitas vezes combinando mais do que um conjunto de ossadas numa só mortalha.

Algumas fontes apontam a origem deste costume do "virar dos ossos", no século XVII, com raiz nos duplos enterramentos do sudeste asiático.

É feita uma enorme festa, celebrando o morto, procurando garantir assim a sua bênção para os anos vindouros. Durante a festa é bebida toaka gasy, uma bebida alcoólica feita em casa.
Por vezes as ossadas são levadas até às cabanas que habitaram em vida, antes de voltarem a ser depositados dentro dos túmulos, onde ficam durante mais alguns anos, até voltarem a ser retirados para serem remortalhados e misturados com ossadas de outros familiares.


13.6.12

Mort Safe na Wikipedia

É com satisfação que anuncio que um dos posts publicados neste weblog é referenciado num artigo sobre o autor Célestin Calmels na Wikipedia Francesa.

9.6.12

O Coração do Poeta

 A 1 de Fevereiro de 1851 morria Mary Shelley (Α:1797 - Ω:1851), a mãe de um dos mais célebres monstros da literatura: a criatura de Frankenstein, construída de pedaços de cadáveres. Entre os seus haveres, foi encontrado um belíssimo volume, encadernado em couro macio, contendo o poema Adonais, um dos mais brilhantes trabalhos do seu marido, o poeta romântico Percy Shelley (Α:1792 - Ω:1822). 
No interior do livro, enrolados num pedaço de seda, estavam os frágeis fragmentos do que restava coração do poeta, confirmando como verdade aquilo que tinha sido lenda...

As escolhas pouco ortodoxas dos Shelleys - ou melhor, de Percy Shelley e Mary Wollstonecraft Godwin - não os deixaram viver sossegados em Inglaterra, à semelhança do que aconteceu com o seu amigo George Gordon, Lord Byron (Α:1788 - Ω:1824). 
As posições políticas de Shelley, a sua apologia do ateísmo e o facto de viver maritalmente com Mary Godwin quando era casado com outra mulher, acabaram por os votar ao ostracismo, numa sociedade vitoriana completamente intolerante.
Casados desde 1816, depois da primeira mulher de Shelley ter-se suicidado por afogamento, os Shelley foram viver para Itália, dois anos depois, numa villa perto de Lerici.
A 1 de Julho de 1822, Shelley decidiu sair com o seu barco (o Ariel), planeando ir até Pisa, onde se encontraria com Lord Byron, com quem preparava uma nova revista. 
Depois de uma semana a viajar, Shelley e os companheiros decidiram ignorar os sinais de tempestade que escureciam o horizonte e fazer-se novamente ao mar, procurando regressar a Lerici quanto antes. 
Seria essa a última vez que seria vistos com vida.

Passaram-se dias e não havia qualquer notícia dos tripulantes do Ariel: este barco não foi encontrado e nenhum corpo dera ainda à costa. 
Mary e os filhos foram levados para Pisa pelo Capitão Trelawny - um amigo muito recente de Shelley, mas que se mostrou extremamente dedicado. Trelawny partiu para percorrer a costa italiana em busca dos cadáveres. 
Dez dias depois da tempestade, foram encontrados três corpos em diferentes locais e Trelawny apressou-se para tentar reconhecer os amigos.


Apesar de estarem já em avançado estado de decomposição, foi possível reconhecê-los pelas roupas e pertences.
Numa Itália que ainda não era unificada, estavam em vigor rigorosas regras de quarentena que impediam que corpos que fossem encontrados nas praias fossem levados para outros locais. Todos os corpos eram enterrados na areia, no local onde eram encontrados, cobertos por cal para acelerar o processo de decomposição.
Shelley e os companheiros não foram excepção. 
Cobertos de cal e enterrados nas praias, poderiam ter ficado perdidos para sempre se, mais uma vez, não fosse a dedicação de Trelawny.

Depois de negociar com as autoridades locais, o capitão conseguiu autorização para cremar os cadáveres e levar consigo as cinzas. Mandando construir um crematório portátil, em ferro, Trelawny começou por experimentar o processo com o cadáver de Edward Williams (um dos companheiros de viagem de Shelley). O processo demorou cerca de cinco horas e, no final, Lord Byron - que se havia juntado a Trelawny - pediu que, caso o destino dele fosse semelhante, o enterrassem onde ele caísse e o deixassem sossegado.

A 16 de Agosto de 1822, mais de um mês depois da fatídica tempestade que lhe roubou a vida, os restos mortais de Percy Shelley foram finalmente retirados das areias da praia e colocados na pira do crematório portátil. 
Labaredas intensas começaram a consumiram o cadáver do poeta, enquanto os seus amigos alimentavam as chamas com oferendas de vinho, sal e azeite.

De repente, segundo as memórias de Trelawny, o capitão viu o corpo do poeta estalar e romper, deixando a nu o seu coração, ainda intocado pelas chamas. 
Agindo somente por instinto, Trelawny estendeu a mão e, queimando-se, retirou o orgão ensanguentado do crematório, escondendo-o entre as suas vestes. Sem ser descoberto, viu o resto do corpo consumir-se até desaparecer, tornando-se cinzas.
Estas foram conservadas numa urna de nogueira e levadas para o cemitério Protestante de Roma, onde Mary pretendia que Shelley fosse enterrado junto do filho, mas a sobre-lotação do talhão levou as cinzas do poeta para outra campa, comprada por Trelawny e adornada com frases de Shakespeare.
Ao lado, uma misteriosa campa vazia. 

Quanto ao coração do poeta, Trelawny pretendia ficar com ele, mas acabou por dá-lo a Mary Shelley, que o conservou até morrer. 

Em 1880, a campa ao lado de Shelley foi finalmente ocupada: uma mulher inglesa transportou até Roma as cinzas de Trelawny, que quis ficar eternamente junto do poeta.

Em 1889, os fragmentos do coração de Shelley, transformados em pó pelos anos, foram colocados no mausoléu da família, com o corpo do filho que lhe sobreviveu.

3.6.12

Primavera nos Prazeres


Para quem estiver por Lisboa, fica a nota que vale a pena dar um salto ao Cemitério dos Prazeres para ver o espectáculo dos jacarandás floridos.
Lembrem-se que este manto lilás dura pouco tempo; depois só para o ano.

26.5.12

Visita Nocturna no Cemitério de Agramonte

 No próximo dia 22 de Junho, pelas 21:30, vão ser abertos os portões do fantástico cemitério de Agramonte para uma visita guiada nocturna. 
Apesar de não ser novidade no panorama tafófilo internacional, é incomum no nosso país.

É realmente uma oportunidade única, a não perder, pela qual os Cemitérios do Porto estão de parabéns. Guiada pelo Professor Francisco Queiroz, esta visita promete, na noite que antecede a das famosas festividades de S. João, santo padroeiro da cidade do Porto. Fica o link para o evento, disponível no Facebook, onde estão mais informações e a partir do qual se poderão inscrever para participar. 
Não percam a oportunidade de participar nesta inesquecível visita.

É com satisfação que constato que a cidade do Porto tem percebido o potencial turístico dos seus cemitérios, recheados de obras magnificas, estando a encetar esforços para os promover junto dos tafófilos, a nível nacional e a nível internacional: sendo um dos associados da prestigiada ASCE - Association of Significant Cemeteries of Europe, fazendo também parte da Rota Europeia de Cemitérios (criada pelo Conselho Europeu – Programa de Circuitos Culturais, constituída por cinquenta e quatro cemitérios em dezoito países), criando um interessante roteiro ilustrado sobre os seus Cemitérios em edição bilingue (português e inglês), placas informativas - também bilingues - junto dos principais monumentos, etc. 
Este é um campo em que o Porto é, sem dúvida, um exemplo a seguir pelas restantes cidades portuguesas.

Mais uma vez, parabéns pela iniciativa! 

7.5.12

Recomendações Tafófilas para a Feira do Livro

Mais uma vez, a Feira do Livro de Lisboa surge-nos no final de Abril, prometendo acompanhar-nos até inícios de Maio, mais exactamente de 25 de Abril a 13 de Maio.


Este ano não temos nenhum livro de ficção para propor, mas a proposta do ano passado, para quem não teve oportunidade de comprar, continua a ser uma boa aposta.

Quanto à não-ficção, temos dois livros de autores portugueses.

O primeiro foi editado há alguns meses e é um volume curioso, que conta a história da morte - e um pedacinho da vida - de personagens portuguesas famosas.
Escrito por Ricardo Raimundo, Vidas Surpreendentes, Mortes Insólitas na História de Portugal da editora Esfera dos Livros, é uma das propostas Mort Safe deste ano.
De Martim Moniz a Joaquim Agostinho, passando por Luís de Camões, Aristides de Sousa Mendes ou D. Maria II, este é um volume a não perder para os tafófilos com um gosto especial pela História de Portugal.
Destaco, por exemplo, a história de Garcia de Orta, um genial médico português, de origem judaica, que viajou para fugir aos tentáculos da Inquisição, tendo morrido na Índia.
Apesar de ter morrido de morte natural, acabou por não escapar a ser castigado por ser cristão-novo: foi exumado e os seus restos mortais queimados pela Inquisição num acto simbólico.
É um dos exemplos que deu origem à expressão "nem os mortos escapam" que era usada para caracterizar a impiedade da Inquisição.

A segunda proposta é o Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes de David Soares, editado pelas edições Saída de Emergência, e que promete fazer as delícias de muitos, incluindo os tafófilos.
Dividido em quatro temas principais - História, Ciência, Oculto e Bestiário - o livro é composto por interessantes e detalhados artigos que esclarecem, desmistificam e apresentam novas perspectivas sobre assuntos conhecidos e obscuros.
Sem dúvida ao gosto dos tafófilos, podem encontrar-se histórias fantásticas relacionadas com cadáveres, funerais e costumes mortuários.
Como o livro não está ainda disponível nas livrarias, falámos um pouco com o autor:
Mort Safe: Como é que surgiu a ideia para este livro?

David Soares: Paralelamente à escrita de ficção, sempre escrevi ensaios sobre os temas mais variados, em principal sobre matérias relacionadas com a história e o oculto, que são duas das minhas paixões. No meu livro Sobre BD, editado em 2004, apresentei uma série de ensaios sobre obras de banda desenhada, cheios de canais de comunicação para áreas alheias à banda desenhada, como a ciência ou a filosofia, e, ainda, no final de cada romance que escrevo, costumo incluir um apêndice de natureza ensaística em que desenvolvo nessa linha as referências reais que servem de matéria-prima às ficções. Nesse sentido, o Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes é um livro que nasceu desse labor e desse amor pelo estudo da história, da ciência e do oculto. Consiste num volume misto de ensaio e enciclopédia macabra, em que discorro sobre o lado negro da história, da ciência, do oculto e do bestiário: quatro vias de conhecimento, interdisciplinares, que se vão polinizando para oferecer um florilégio muito especial e, sublinho, absolutamente real. Aqui não há lugar para a ficção: tudo o que está no livro é factual. Aliás, deixei de lado muitas histórias interessantes, porque não possuíam fundamento factual.

MS: Ao ler "enciclopédia macabra" não posso deixar de perguntar: e a tafófilia, tem lugar nesta obra?
DS: Tudo o que é incomum, extravagante e bizarro, mas macabro tem lugar nesta obra e, como tal, a tafofilia não é excepção, embora não marque presença exclusiva, antes surgindo em contextos mais amplos. Todavia, o livro contém uma história que pode incluir-se pela porta grande nessa temática e que narra o desfecho trágico e real dos restos mortais de um dos mais conhecidos pintores europeus: Francisco Goya, autor das famosas "pinturas negras".
MS: Com tanto temas diferentes e a necessidade de encontrar fundamentos reais para todos os artigos, suponho que o trabalho de pesquisa tenha sido profundo.
DS: Evidentemente, um trabalho desta natureza, rigoroso e muitíssimo complexo, suporta-se numa pesquisa e leitura profundas dos temas em exposição, assim como num constante cruzamento de fontes que assegura que os mesmos são analisados de maneira fidedigna sem espaço para a mitificação. Pelo contrário, um dos pilares do livro é, de facto, a desmistificação de uma série de conceitos, alguns até bastante enraizados na psique popular. É, felizmente, um livro isento de dogmas, de agendas, no qual o único compromisso que existe é, mesmo, ir ao encontro do conhecimento. É um livro para fãs de conhecimento que não receiem destruir concepções já construídas, mas erróneas. Penso que é um título importante e que contém uma mensagem também muito importante: a de que o conhecimento é luz, mesmo quando emitida por um compêndio negro.

A apresentação do livro (com pré-venda exclusiva) será no dia 12 de Maio pelas 16:30 no Auditório da APEL na Feira do Livro de Lisboa e ficará a cargo do cineasta e escritor António de Macedo.
O Instituto de Meteorologia promete uma tarde de Sol e o autor uma conversa animada.

Apareçam!...