Durante os séculos XVIII e XIX dois grandes temores relacionados com a Morte aterrorizaram a sociedade ocidental: ser enterrado vivo e acabar numa mesa de anatomista, dissecado perante uma audiência de alunos de medicina.
E estes não eram receios infundados.
Para alguém que morresse em Londres, Dublin ou Edimburgo, por exemplo, a probabilidade de não passar sequer uma noite debaixo de terra era alta.
Segundo a lei, os cadáveres dos criminosos sujeitos a pena de morte eram entregues aos anatomistas para dissecação, mas todos os outros corpos tinha direito a um enterramento religioso e eram poupados a essas práticas, mal vistas por todos os credos vigentes: dissecar um corpo era visto como uma profanação; um castigo, pelo que estava reservado apenas aos realmente maus.
O aumento do número de universidades e alunos e os avanços da ciência, aliados a esta lei limitativa, acabaram por criar um novo mercado: a necessidade de cadáveres frescos.
Inicialmente, alguns alunos mais corajosos arriscavam entrar nos cemitérios durante a noite para tentar extrair cadáveres, mas depois de alguns deles serem vitimas de ferimentos com armas de fogo, acabou por criar-se também uma nova profissão: a dos ladrões de corpos.
Entrando nos cemitérios durante a noite, em silêncio, com candeias escurecidas e pequenas pás de madeira, estes homens cavavam nas sepulturas recentes, de terra fofa, partiam a tampa do caixão e, com a ajuda de cordas e ganchos, puxavam o cadáver para fora daquela que deveria ser a sua última morada.
Despidos das mortalhas - era crime mais grave roubar a mortalha ou a roupa do morto do que o corpo - eram dobrados e enfiados em sacos de serapilheira que os ladrões transportavam às costas ou em carroças (quando eram muitos) puxadas por cavalos com as ferraduras envoltas em cabedal, para não fazerem barulho.
No final, os ladrões voltavam a repor a terra e deixavam tudo conforme tinham encontrado, de maneira a passarem despercebidos: cemitério roubado era cemitério vigiado.
Nessa óptica, muitos dos roubos não chegavam sequer a ser descobertos.
Por este motivo, o número de cadáveres roubados nos cemitérios de Edimburgo, Dublin e Londres é impossível de apurar, mas um dos ladrões chegou a confessar ter roubado mais de quatrocentos cadáveres num ano, o que dá uma média de mais de um corpo por noite.
Este tipo de crime acontecia nas grandes cidades, de forma a garantir a rentabilidade do negócio; não só era aí que se encontravam as principais universidades (procura), como também era aí que existiam grandes cemitérios e a elevada densidade populacional garantia o enterramento de cadáveres frescos com regularidade (oferta).
A procura era de tal forma elevada, e distribuída geograficamente, que Edimburgo e Dublin exportavam cadáveres para outros locais. Este facto foi descoberto depois de barris e caixas de carga não terem sido recolhidas pelos compradores durante demasiado tempo e cheiro dos cadáveres em avançado estado de decomposição ter atraído a atenção das autoridades.
No caso de Dublin, os caixotes eram muitas vezes marcados como contendo queijo irlandês.
Este era um negócio arriscado, mas altamente lucrativo; mesmo cadáveres menos frescos ofereciam possibilidades: dentes, mãos e pés podiam ainda ser vendidos. Para além disto, podia ainda ser vendida a gordura dos corpos para fabrico de velas e sabão.
As mãos e pés eram vendidos a cirurgiões para dissecação; no caso dos dentes, estes eram negociados com dentistas para construção de dentaduras postiças.
O negócio dos dentes era de tal forma interessante que vários ladrões de corpos se aventuraram a viajar até terras de França, para os recuperar dos cadáveres dos soldados abatidos em combate.
O negócio dos dentes era de tal forma interessante que vários ladrões de corpos se aventuraram a viajar até terras de França, para os recuperar dos cadáveres dos soldados abatidos em combate.
Estas práticas eram conhecidas (alguns ladrões foram sendo apanhados ao longo dos anos) e algumas personalidades com influência tentaram, sem grandes resultados, alterar as leis de forma a permitir que os corpos não reclamados pudessem também ser enviados para dissecação, aumentando largamente a oferta legal de forma a acabar com o roubo de cadáveres pelos ressurreicionistas.
As populações tentavam - em vão - precaver-se: construiram-se muros altos e torres de vigia em volta dos cemitérios, grupos de vigilantes percorriam os terrenos de noite, munidos de lanternas, armas e cães, e construiam-se invenções que permitissem impedir o roubo como os mort safe ou as casas de mortos (pequenas construções de pedra, no interior dos cemitérios, sem janelas e acedidas apenas por uma pequena e pesada porta de madeira, normalmente iluminada e vigiada, e que serviam para manter os corpos durante as primeiras semanas, de forma a poderem ser inumados apenas quando se encontravam num estado de decomposição avançada).
Não foi nenhuma destas medidas que decretou o final dos ladrões de corpos, mas a escalada do crime que transformou ladrões em assassinos.
É famosa a história de Burke e Hare que, a partir de um hotel de mendigos em Edimburgo, transformavam indigentes vivos em corpos prontos para vender e lucrar, ficando ainda em posse dos poucos pertences dos mortos. Mataram e venderam cerca de vinte pessoas, até terem escolhido uma vítima conhecida.
Foram apanhados. Burke foi julgado, condenado e, depois de morto, entregue a anatomistas para dissecação pública. Hare testemunhou contra o colega de profissão e acabou em liberdade.
Existem outros casos semelhantes (como Bishop e Williams), mas Burke e Hare são os mais conhecidos, tendo mesmo sido escrito um conto The Body Snatcher por Robert L. Stevenson baseado no caso (adaptado ao cinema em 1945 pela mão de Robert Wise com Boris Karloff e Bela Lugosi nos principais papeis).
Finalmente, em 1832 é aprovado o Anatomy Act que permite que, dependendo de um conjunto de condições, determinados corpos sejam legalmente disponibilizados para dissecação, terminado assim com a procura de cadáveres ilegais ou seja, acabado com o negócio dos homens do saco (sack'em-up men) no Reino Unido.
No resto da Europa este problema não tinha estas dimensões, uma vez que quase todos os países forneciam corpos às universidades de forma legal.
Em França, era prática, desde os tempos da Revolução Francesa, enviar os corpos dos doentes que morriam nos hospitais para dissecação, sempre que estes não eram reclamados por familiares nas vinte e quatro horas seguintes.
Na Alemanha e Áustria actuava-se de forma semelhante, sendo que também os indigentes que morriam em casas de acolhimento, os suicidas, os criminosos e as prostitutas tinham o mesmo tratamento.
Também na Holanda os hospitais públicos forneciam os cadáveres necessários.
No caso da Itália, os corpos não reclamados (de hospitais e casas de acolhimento para pobres) eram entregues às escolas de anatomia, depois de terem sido sujeitos aos ritos religiosos necessários.
Relativamente a Portugal, as referencias que encontrei (muito poucas e em material não português) dizem que a nossa prática era em tudo semelhante à italiana, sendo que a elevada taxa de mortalidade infantil nacional permitia o fornecimento de cadáveres frescos em abundância.
Pessoalmente, e considerando a enraizada prática católica no nosso país, tenho alguma dificuldade em aceitar esta versão. Recordo que a tentativa de criação de cemitérios e a obrigatoriedade da inumação deixar de ser feita no interior e pátio das igrejas levou a uma revolta popular que fez irromper uma guerra civil que durou oito meses.
No entanto, a não existência de outros documentos escritos que contrariem esta informação leva-me a apresentá-la como provável.
Seria interessante perceber até que ponto a evolução do estudo da medicina em Portugal e as leis dos séculos XVIII e XIX permitem validar ou negar a informação apresentada nos parágrafos anteriores. É preciso, no entanto, ter em atenção que os cemitérios românticos (na periferia dos centros populacionais e independentes de igrejas paroquiais) só aparecem em Portugal a partir de 1833, depois de resolvida a situação no Reino Unido, último reduto dos ladrões de corpos na Europa.
Confesso que teria alguma piada perceber se o célebre "Homem do Saco" com que as nossas avós nos ameaçavam em crianças, numa tentativa de nos obrigarem a comer a sopa ou a não fazer barulho, não seria mais que um pilha-cadáveres à portuguesa.
Olhando para lá da Europa, para os Estados Unidos da América, o caso não era muito diferente do que se passava no Reino Unido. Apesar de alguns estados terem leis mais avançadas, a legislação da maioria dos estados do Sul permitia a germinação e proliferação dos ladrões de corpos.
Duas das maiores e mais reconhecidas escolas de medicina da altura eram as de Filadélfia e Baltimore, e os cadáveres das aulas de anatomia era mortos exumados dos cemitérios mais próximos.
Numa tentativa de resolução do problema, a legislação foi alterada de forma a aumentar a penalização para os ladrões, ao mesmo tempo que prometiam a entrega dos corpos dos criminosos às escolas de anatomia. Estes não eram, obviamente, em número suficiente e o roubo de cadáveres continuou ao longo das décadas.
Actualmente, o roubo de corpos - quando existe - tem outro tipo de objectivos, mas há muito tempo que as torres de vigia dos cemitérios deixaram de ter sentinelas com armas e cães.
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