18.4.11

A Cidade dos Mortos - Comentário

Já tive oportunidade de assistir ao documentário A Cidade dos Mortos e à curta-metragem Waiting For Paradise do realizador Sérgio Tréfaut.

A sessão a que assisti foi especial, uma vez que no final da projecção o realizador - presente na sessão - disponibilizou-se para responder a questões apresentadas pela audiência, fazendo ainda uma interessante introdução em que apresentou alguns pontos que não são focados no documentário.

A minha primeira nota vai para a questão fundamental do filme: o cenário é um cemitério, mas é difícil para nós, ocidentais, perceber isso. A simbologia funerária a que estamos habituados tem uma raiz claramente cristã, onde existem anjos, cruzes e uma arquitectura bastante homogénea, apesar da sua diversidade.
Quando olhamos para uma imagem que representa um cemitério de raiz cristã conseguimos rapidamente identificá-lo enquanto tal.
Isto não se passa com el arafa*, uma vez que este é um cemitério de raiz islâmica e a simbologia é diferente.
Em tons maioritariamente ocres, vemos ruas e casas e pessoas.
A única peça que conseguimos identificar como sendo funerária, pelo nosso padrão ocidental, são algumas campas isoladas, pintadas em matizes azuis, verdes, amarelos ou brancos; tons pastel que pouco se destacam no mar de pó.

Devido às necessidades religiosas, os mausoléus são construidos com câmaras onde as pessoas podem pernoitar e são essas câmaras que os donos alugam ou cedem gratuitamente a desalojados, que acabam por habitá-las de forma permanente.

Em algumas das casas vemos sofás, armários, televisões, cozinhas quase completas... É difícil distinguirmos entre estas residências e as que encontramos em bairros pobres. As "comodidades" que vemos são até muitas. Confesso que esperava uma pobreza bem mais acentuada.
A meio do documentário vemos um vendedor ambulante, com o seu carro, passear pelas ruas, anunciando "leite, natas, bolos e arroz doce".
E os miúdos aparecem e pedem bolos às mães, que os compram e aproveitam para dizer mal das vizinhas e criticar as praticas alheias.

Talvez por não nos ser possível identificar a simbologia ou perceber as mensagens escritas nas paredes, o facto do espaço ser um cemitério tem pouca importância.

Há alguns anos, vi um documentário sobre a mesma temática: pessoas que habitam em cemitérios. Nesse caso, num cemitério Filipino; provavelmente, em Manila. As pessoas que moravam no cemitério eram, com efeito, os mais pobres dos pobres.
Não tinham mobiliário ou qualquer tipo de conforto e dormiam dentro dos mausoléus, sobre as campas, cobertos por panos. Num dos casos, a única coisa que tinham para cobrir-se era uma faixa publicitária de um partido político (ou de uma marca publicitária, nem sei).
Ninguém se sentava à mesa para comer, porque não havia mesa: comiam em pratos lascados, pousados sobre as campas.
Eram todos magros e tristes.
As crianças brincavam entre o pó, fazendo rolar crânios desenterrados, e o narrador explicava que o cheiro a cadáveres em decomposição era nauseante.
Claro que a simbologia funerária era cristã e, por isso, mais interpretável aos nossos olhos, mas não foi esse o factor que mais me impressionou.

Esta não é a realidade do Cairo.

O documentário A Cidade dos Mortos é muito interessante e permite-nos ver um pouco do dia-a-dia das famílias que habitam aquele espaço mas, apesar de tudo, é simples esquecermos que se trata de um cemitério.
Seria importante, ainda assim, explicar as diferenças entre os habitantes desse espaço e os outros bairros pobres do Cairo, perceber como é que alguns deles têm luz e água, ou qual é o nível de (in)dependência de quem vive ali, relativamente ao exterior.

No final, ficamos com a sensação que muito ficou por dizer.
Gostaria ainda de ter visto o impacto da chegada de um funeral; não a própria celebração fúnebre - algo que, em si, não se relaciona com a abordagem deste filme -, mas as alterações à rotina que isso provoca: gente a esvaziar e a limpar os mausoléus, antes das chegadas das famílias, por exemplo.

É clara a importância do casamento para aquelas famílias, mas julgo que esse é um factor comum a todos os habitantes do Cairo, do Egipto, de outros locais com culturas semelhantes. No final, a curta-metragem permite-nos assistir ao desenrolar de um casamento no espaço do cemitério: desde a preparação até ao final da boda.

De qualquer das formas, este é um trabalho muito interessante que está a passar nas nossas salas de cinema e que não devem deixar de ver.


Imagens 1 e 2 - Cairo, Egipto.
Imagens 3 e 4 - Manila, Filipinas


* el arafa significa literalmente o cemitério.

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