14.2.11

Falecidos Famosos: Lizzie Siddal

Numa escura noite de Outono, no ano de 1869, uma macabra procissão trilhou os caminhos do Cemitério de Highgate. Com a ajuda de candeeiros, os coveiros liam os nomes nas pedras tumulares, procurando por um túmulo especial. Uma vez encontrado, juntaram uma pilha de lenha e acederam uma fogueira de labaredas trémulas; em seguida, agarraram nas pás e enxadas que traziam com eles e começaram o trabalho.
Durante horas nada mais se ouviu a não ser o crepitar das chamas, fustigadas pelo vento, e o barulho monótono das pazadas a retirar terra. Por fim, o embate de metal em madeira: o ressoar oco de um caixão. Mais terra e vozes murmurantes - envergonhadas. Cordas estalaram e os homens içaram o esquife para fora da cova.
Alguém se aproximou dele, sem temor, e fez saltar a tampa com esforço. Os restantes recuaram, assustados.
Dizem que o rosto conservara a beleza: incorrupto.
Dizem que os seus luxuriantes cabelos ruivos enchiam o caixão com lampejos de fogo, tendo continuado a crescer depois da morte.
Dizem que parecia adormecida, linda, perfeita, como nas telas onde foi pintada até à exaustão.
Uma mão desceu entre os cabelos e o rosto do cadáver e regressou com um manuscrito encadernado a couro. O mesmo homem fez sinal aos coveiros: mandou fechar o caixão e devolvê-lo à terra, voltado a enterrar a imortal Elizabeth Siddal.

Elizabeth Siddal (Α:1829 - Ω:1862), a ruiva que inspirou a Irmandade Pré-Rafaelita, viveu uma das mais belas e trágicas histórias de amor do século XIX.

Descoberta aos vinte anos enquanto trabalhava numa loja de chapéus, os seus magníficos cabelos ruivos, a magreza e o rosto fora do comum rapidamente a tornaram na modelo favorita do grupo de jovens pintores que pretendia revolucionar o mundo artístico vitoriano. O seu primeiro grande sucesso enquanto modelo viria das mãos do talentoso Millais.
No Inverno de 1852, este pintou-a morta, encarnando Ofélia, num vestido branco flutuante, rodeada de flores e afogada numa ribeira.
Na realidade, Lizzie quase morreu, de facto, durante a realização deste trabalho: Millais tinha uma enorme banheira no atelier, que enchia de água quente e onde fazia Lizzie deitar-se tardes inteiras, flutuando, numa simulação do riacho.
Para manter a água quente, Millais acendia um conjunto de lamparinas sob a banheira. Numa das últimas sessões, as lamparinas apagaram-se e Lizzie, não querendo interromper o pintor, deixou-se ficar na água, gelando.
Essa tarde resultou numa pneumonia que muito a debilitou e da qual nunca recuperou completamente.

Entretanto, Dante Gabriel Rossetti - um dos mais talentosos artistas do grupo - apaixonou-se perdidamente por Lizzie e não a deixava posar para mais ninguém.
Rossetti tornou-se o seu mentor, ensinando-a a desenhar e pintar. Os seus trabalhos chegaram a ser expostos com os dos restantes elementos da Irmandade Pré-Rafaelita. Durante anos, Lizzie e Rossetti viveram um para o outro, num amor que ficou registado nos inúmeros trabalhos do artista, onde cabelos ruivos enchem as telas de fogo.

Christina Rossetti, irmã do pintor, escreveu a propósito desses amores:
"He feeds upon her face by day and night,
And she with true kind eyes looks back on him,
Fair as the moon and joyful as the light:
Not wan with waiting, not with sorrow dim;
Not as she is, but was when hope shone bright;
Not as she is, but as she fills his dream."
Lizzie foi uma mulher de saúde frágil, incorrendo muito cedo no vício do láudano, que lhe alterava continuamente a disposição, e a relação com Rossetti, atribulada e cheia de traições e mágoas, deixava-a prostrada e triste, naquilo que os especialistas e estudiosos consideram ter sido um estado de depressão crónica. Lizzie viajou para fora de Londres várias vezes para tratar dos nervos, quase terminando o seu affair com Rossetti pelo menos numa das ocasiões, para desesperar de saudades, piorar seriamente o sempre precário estado de saúde e obrigar Rossetti a deixar trabalho, amores e amigos em Londres, rumando, semi-enlouquecido, para onde quer que Lizzie definhasse.

A proposta de casamento só aconteceu sobre um leito que todos esperavam ser de morte e foi carregada de arrependimento e culpa; mas ao casar, Rossetti prometeu ser fiel a Lizzie e todos os factos conhecidos fazem-no cumpridor dessa promessa.

Quando Lizzie se suicidou, Rossetti quase enlouqueceu e depositou um manuscrito de poemas dentro do caixão dela, sob os belos cabelos ruivos, prometendo-lhe amor eterno.

No lento processo de luto pintou um dos seus mais belos e louvados trabalhos "Beata Beatrix", representando Lizzie no momento final, de olhos fechados, recebendo uma papoila - alusão ao ópio - do bico de uma fénix - renascimento, ressurreição, imortalidade, vida após a morte...
Dizem que se fecharmos os olhos, conseguimos ouvir o último suspiro de Lizzie, vindo dos lábios pintados por Dante.

Sete anos depois, é um Rossetti enfraquecido e incapaz de pintar que se deixa convencer por um agente a pedir uma autorização para exumar o corpo de Lizzie e recuperar o manuscrito, mas é incapaz de estar presente durante a exumação.

O caderno recuperado tem um conjunto de poemas belíssimos, originalmente escritos para Lizzie, mas o seu novo livro - uma mistura de trabalhos inéditos com os recuperados em Highgate - não é bem recebido pela critica.

No final da vida, Rossetti pediu para não ser enterrado no talhão da família junto de Lizzie. Disse-se que foi por remorsos.


Família Rossetti no Cemitério de Highgate

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